8 de março, 15 de março e os cínicos do sofá

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Manifestação Nós Por Elas, 9 de março de 2019.

Somos um país bipolar. Passamos a vida a ouvir arengar contra a sociedade civil, que é fraca, anémica, não se manifesta, não se faz sentir, inexiste. Porém, acordada a sociedade civil por uma qualquer razão válida, há que gozar com a dita sociedade civil, que mais valia ter estado quieta em casa a coser meias ou enfrascar umas garrafas de vinho tinto, não conta para nada o que dizemos quando nos manifestamos, é tudo ridículo, não há consequência, para que é que as pessoas se deram a tantos trabalhos, os idiotas.

Há dias em que é claustrofóbico viver em Portugal, tal a pequenez e mesquinhez que por aí se passeiam. E não se trata apenas de anónimos das redes sociais. Comentadores com espaço mediático também fazem estas figuras. Lembram-nos as palavras de Oscar Wilde: um cínico é uma pessoa que sabe o preço de tudo e o valor de nada.

A greve feminista de dia 8 juntou em Lisboa vinte mil pessoas. As fotografias mostravam um mar de gente pelas ruas da Baixa (eu, infelizmente, não consegui ir, mas várias autoras da Capital Magazine estiveram presentes). Várias outras cidades portuguesas tiveram mais uns milhares de manifestantes. No dia seguinte, a manifestação Nós por Elas, contra a violência doméstica, juntou cerca de mil pessoas entre o Terreiro do Paço e o Largo do Município. Apesar dos números impressivos, boa parte do país fez por ignorar o que havia acontecido. Afinal é um método apurado durante milénios: fingir que as mulheres não fazem nem dizem nada, ignorar à força os seus contributos, as suas palavras e as suas manifestações, não reportar, não comentar, passar e olhar para o lado, esperar que seja um homem a ‘descobrir’ e a contribuir o que as mulheres já aventaram e reivindicaram. Tem sido um método eficaz, por que razão se mudaria?

A greve climática de 15 de março, não podendo ser ignorada (esse tratamento está reservado às mulheres), gerou bastante azia. Que foi uma organização da extrema esquerda (e tal aleivosia, para as almas inteligentes que não conseguem ver a justeza das mensagens para além do mensageiro, é fatal). Que os miúdos foram instrumentalizados pelos professores. Que estavam a protestar contra o capitalismo (esse realidade sacrossanta que nunca erra nem gera injustiças, desequilíbrios ou efeitos secundários – enfim, suspiro, meu, grande apoiante do capitalismo mas que sei que, como qualquer construção humana, é falível e precisa de ser controlado e corrigido). Que depois vão para casa e continuam a não apagar as luzes das salas e quartos vazios. Que usaram papel para os seus cartazes (juro, li esta acusação; de facto foi um grande erro os estudantes não prepararem pergaminhos atempadamente). Ai Deus nos acusa que faltaram às aulas (coisa nunca vista em adolescentes). Que é uma manifestação que não vai ter efeito nenhum nem levar a nenhuma consequência.

Também já está, como eu, com vontade de bater em pessoas? Tal o cansaço que provoca quem se dá ao trabalho de gastar energias em apoucar aqueles que se manifestam por causas boas? Percebo quem não se queira manifestar, quem ache ridículas as reivindicações, quem se esteja a marimbar. Mas por que razão se incomodam com o ativismo alheio? Alguns até se dizem liberais, mas ficam perturbadíssimos que outros usem a sua liberdade de manifestação e de expressão para protestarem, exigirem, mostrarem os seus pontos de vista.

É tudo muito português na versão pequena e mesquinha e ainda embrenhada de salazarismo. Não se tolera que alguém tenha opinião e a manifeste. Não se consegue conceber um movimento novo, inorgânico ou não. Temos pavor da novidade, a primeira reação é recusá-la, menorizá-la, apoucá-la. Tal como não gostamos que terceiros sejam ousados e criem negócios bem sucedidos, também não conseguimos tolerar que outros tenham causas, sejam interpelados por realidades de que desgostam, mostrem emotividade e têmpera e paixão, se mexam, causem rebuliço. O sucesso do ativismo alheio é tão fatal para as almas pequenas como o enriquecimento de terceiros que arriscam nas empresas.

Mais: mostra a incapacidade muito Estado Novo de viver e conviver com opiniões diferentes. Não se aguenta que outros desafiem a sua ortodoxia e, sem lhes pedir licença, se rebelem e vão à sua vida intelectual e cívica.

Claro que muitas manifestações são apenas catarses (e valem por isso mesmo) e não têm consequências. Mas geralmente têm (e é isso que assusta os críticos). Em boa verdade, dificilmente se supõe que estes dois levantamentos cívicos sejam inócuos – sobretudo dados os esteróides com que o populismo, agreste quer ao feminismo quer ao ativismo ambiental, tem crescido. Donde, é necessário uma espécie de chamamento às armas pacífico.

Há semanas estive na apresentação, na Aula Magna, do estudo sobre as mulheres portuguesas da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Um dos painéis contou com a presença de Samantha Powers, que também lembrou que muito cínicos disseram das manifestações feministas no 8 de março de 2016, após a tomada de posse de Trump, que não serviam para nada nem teriam consequências. Não serviram para nada?, perguntou Powers. Serviu, pois, constatou. Serviu para eleger em 2018 a Câmara dos Representantes mais feminina e diversa de toda a história americana (tudo graças aos candidatos do partido democrata).

Nunca se sabe como os movimentos vão terminar, nem que boas consequências saem deles. Mesmo que produzam resultados insuficientes, nunca há vergonha em tentar, em protestar por causas justas. E uma coisa sabe-se de ciência provada: nunca se chegou a lado nenhum nem se melhorou o mundo ficando calado e jogando playstation em casa.

Parabéns aos que participam e aos que têm coração suficientemente grande para aderirem à defesa pública do que consideram justo. Aos cínicos aconselha-se que permaneçam no sofá. E, se consideram que as pessoas devem estar caladas e quietas, que apliquem o conselho a si próprios.

 

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

2 COMENTÁRIOS

  1. Maria, agradeço o seu comentário. Pedia-lhe que da próxima vez use o nome completo, porque acreditamos na discussão pública feita por pessoas bem identificadas, uma vez que vivemos sob a ameaça dos bots e de anónimos mal intencionados intervindo para inquinar o debate público. Peço que compreenda.

    Quanto ao que diz, esclareço (e não fiz parte da organização de nenhuma) apenas que a manifestação de dia 9 não foi substituta ou concorrente da de dia 8. Muitas pessoas participaram em ambas. A de dia 9 foi um protesto pelo tratamento que os tribunais dão aos casos de violência contra mulheres. Era, portanto, um assunto específico. Mas tem alguma razão a sua crítica. No dia 9 também se manifestou a MDM, ligado ao PCP (que não esteve no dia anterior), e, aí sim, houve vários amuos do PCP tentando menorizar a manifestação de dia 8 (que teve mais gente e participaram todos os partidos que quiseram).

  2. É verdade há essa característica de desvalorizar, ridicularizar quem se manifesta ao mesmo tempo que nos lamentamos que o povo é sereno e tudo aceita. Em relação às duas manifestações de mulheres tenho a dizer que achei muito mau não ter sido Única. É outro dos nossos aspectos, nunca parece haver uma causa suficientemente forte para que sejam esquecidas diferenças ..
    Quanto à dos estudantes, pareceu-me que as escolas se puseram à margem, não sei se foi bom ou mau. Mas acho que foi importante.

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