Na sexta-feira a rua foi nossa.
A rua costuma ser deles: a selva machista onde as mulheres são olhadas, avaliadas, criticadas e assediadas. Onde temos medo, onde pensamos constantemente se será seguro, se os predadores estão ali aquela hora, se o que vestimos lhes vai chamar a atenção, se vamos chegar a casa inteiras e imperturbadas.
Mas no dia 8 de março a rua foi nossa. Um tsunami de mulheres encheu a Praça do Comércio, a Praça do Município e o Rossio. Éramos a maioria das 20.000 pessoas que foram para a rua, de crianças a idosas, segurando diferentes cartazes, gritando e rugindo pelos nossos direitos. Nessa noite a selva pertenceu às leoas. E não tivemos medo, não nos questionámos se seria seguro. Bastava olhar para o nosso lado e víamos a força das nossas irmãs a rugir os mesmos gritos. Estamos juntas, elas protegem-me e lutam por mim e eu por elas. Não as conheço, mas os olhares e os risos de cumplicidade foram o que me encheram o coração e o que jamais esquecerei.
Um homem no meio de um tsunami de mulheres não sente medo. Uma mulher no meio de um tsunami de homens sente-se apavorada. Por muito que tentemos racionalizar, esta é a experiência de todas nós, temos medo. E temos razões para ter medo, porque todas as estatísticas nos provam que os homens são o maior risco para as mulheres e para os outros homens. E por isso um homem se sente tão bem quando rodeado de mulheres, porque não somos nós os predadores, porque connosco estão em segurança.
Mas por isso também alguns homens tentam apropriar-se da nossa luta. O caminho para a inevitável libertação das mulheres – o objectivo último do feminismo – é mais rapidamente trilhado se os homens colaborarem, mas isso não pressupõe que assumam qualquer protagonismo num movimento que é nosso. Os homens jamais poderão ser centrados pelo feminismo.
Os que ontem participaram na nossa greve foram bem-vindos mas para esses dirijo os seguintes gritos:
“Se querem ajudar, deixem-nos passar!”
“Para seres nosso aliado, tens de destruir o patriarcado!”
Muitos destes homens têm a intenção louvável de nos apoiar na nossa luta, embora por vezes seja difícil assumirem uma posição secundária e ouvirem as mulheres num movimento que só a nós nos pertence. Chama-se privilégio masculino, é a experiência deles desde que nasceram, de tal forma que muitos nem reconhecem a sua existência.
Um episódio ilustrativo foi a primeira pessoa que vi ser entrevistada em directo na greve feminista foi um homem que segurava um cartaz num grupo de várias mulheres. A reação adequada e esperada seria educar os jornalistas, recusar responder-lhes e dar a palavra às mulheres ao seu lado. Mas o que ele fez foi permanecer refém do seu ego e privilégio masculino e roubar o foco e as luzes às suas companheiras. Não ouvi o que ele disse, nem vi a entrevista depois, mas sabemos com toda a certeza que foi mansplaining, porque é essa a definição: um homem a explicar a greve feminista no dia 8 de março.
Mas tão ou mais grave que o apoderamento do nosso movimento por estes homens é a apropriação por outros, pelos transactivistas. Não se nega que as pessoas trans sofram discriminação, violência e preconceito. Mas a raíz da sua opressão não é a misoginia. Nós mulheres somos oprimidas desde antes do nosso nascimento – em milhões de casos nem chegamos a nascer porque a ecografia revelou que o feto é do sexo feminino. Não escolhemos ser XX, não escolhemos pertencer ao sexo “fraco”, de segunda categoria, socialmente destinado a estar subjugado à outra metade da população. Também não somos oprimidas porque usamos vestidos ou verniz. Podemos vestir o que quisermos que continuaremos a ser vistas como cidadãs de segunda. Infelizmente não nos conseguimos identificar para longe da nossa opressão.
O feminismo não centra pessoas do sexo masculino que foram socilizadas e educadas como pertencendo ao sexo dominante e opressor, ainda que sejam vítimas de homofobia e transfobia, e ainda que os seus opressores sejam os mesmos que oprimem as mulheres. Partilharmos opressor, não implica incluirmos todas as vítimas do patriarcado no nosso movimento, porque as causas da nossa opressão são distintas. E a única forma de a combatermos eficazmente é atacar essa causa – no caso do feminismo temos de atacar a misoginia e, no caso do transactivismo, a transfobia. São movimentos distintos. E sexta-feira era o dia das mulheres, da luta contra a misoginia e sexismo. Era o nosso dia.
Um dos cartazes trans dizia: “se o teu feminismo não inclui mulheres trans não é feminismo.”
Se não chamarmos FEMinismo ao movimento que luta pela libertação, pelo fim da violência e opressão de todas as pessoas do sexo FEMinino, que nome lhe devemos dar? Podemos ter um movimento nosso? Espaços nossos? Greves e marchas nossas? Direitos nossos? Somos “só” metade do planeta, mas ainda assim sofremos pressões diárias para incluir a outra metade. Este facto sozinho revela quão secundariamente ainda somos vistas: todas juntas ainda não chegamos nem valemos o suficiente. Se o feminismo é sinónimo de humanismo, se é suposto centrar, no limite, toda a humanidade, para que serve? Se não reconhecemos as lutas e dificuldades específcas partilhadas por 3.5 biliões de pessoas e nos é exigido diluí-las na lista de aflições que atingem a população, irrespetivamente do seu sexo, descaracterizamos o nosso movimento.
O feminismo é das, pelas e para as mulheres. Os homens são bem-vindos como aliados. Caso contrário transformamos o feminismo num inútil, vazio e neutro “todaagentismo” – um repto inútil semelhante a “all lives matter”. Não deixamos, não temos medo: a rua foi nossa e o FEMinismo é para as mulheres.
Em homenagem a Keith Flint, que me deu o melhor concerto da minha vida, na sexta-feira as mulheres foram as firestarters.