Uma violação é sempre dos piores crimes (apesar de em Portugal ser normalmente premiada, nos poucos casos de condenação judicial, com pena suspensa). As violações de guerra, se possível, conseguem ser ainda mais insidiosas e criminosas. Por vários motivos. Geralmente ocorrem em massa, vitimizando grande número de mulheres. Muitas vezes as vítimas são submetidas a violações em grupo por vários soldados – e um gang rape é particularmente traumatizante. E, também, pelo objetivo das violações de guerra: usar os corpos das mulheres como objetos onde os militares se vingam e onde punem os atos de guerra de outros homens. Tal como incendeiam as casas e os carros, destroem as colheitas, pilham os monumentos públicos e saqueiam os bens valiosos dos civis, aniquilam os hospitais, pontes, escolas, vias de comunicação e outras infraestruturas essenciais, bem, na mesma linha de dar cabo de coisas, violam as mulheres do lado inimigo. Para os donos (homens) destas coisas todas aprenderem. Bombardeiam-nos uma aldeia, ou uma fábrica ou uma coluna de tanques de guerra e nós, como desforra, destruímos de volta as vossas coisas: violamos as vossas mulheres, por exemplo.
(Lembremos que uma violação não é grave e traumatizante simplesmente pela agressão física que – também – é. É grave e traumatiza porque retira totalmente o controlo e a agência sobre si própria à mulher, mesmo sobre a sua intimidade. É grave e traumatiza porque desumaniza – a mulher é nada mais que um corpo, um objeto que existe para uso sexual ou político de terceiros. Tudo isto concorre para o trauma: a desumanização, a falta de controlo sobre si além, claro, da violência.)
As violações em massa acontecem frequentemente quando há disputas étnicas ou religiosas. De modo a engravidarem à força as mulheres do lado inimigo, que assim vão gerar filhos que não são nem da etnia pura nem da religião da mãe e do resto da família e comunidade. Nestes casos, as mulheres são coisas parideiras que valem como produtoras de outros seres humanos que serão motor de uma diluição étnica ou religiosa – a contento do lado da guerra que viola em massa. Além da tal diluição, geram-se inúmeros problemas sociais – crianças (nascidas das violações) abandonadas ou desprezadas pela comunidade (e que se tornarão jovens problemáticos), mulheres repudiadas pela família depois da violação, laços familiares desfeitos ou comprometidos, comunidades com este trauma coletivo (a somar aos traumas individuais). E quanto mais o inimigo estiver enredado em problemas sociais, menos capacidade estratégica militar ofensiva ou defensiva terá no futuro. É estratégia militar a longo prazo, portanto.
Aconteceu, com este objetivo, há duas décadas e meia na Europa, na guerra da Bósnia, onde se criaram ‘campos de violação’ para engravidar à força muçulmanas bósnias, de modo a gerarem involuntariamente filhos de militares sérvios. Acontece presentemente com as mulheres rohingya na Birmânia.
As violações de guerra em massa são o clímax da objetificação, da coisificação, da desumanização das mulheres. Estão agora a acontecer massivamente na Ucrânia, perpetradas pelos soldados russos. De resto, os herdeiros do infame exército soviético, que violou a eito as mulheres alemãs depois de terminada a Segunda Guerra Mundial, ultrapassando em número e crueldade as violações de outros exércitos, desde o alemão (violaram mulheres judias sem grandes preocupações raciais) até ao americano, passando pelo canadiano. (Não houve inocentes).
Inicialmente, a Human Rights Watch, no meio de outras atrocidades arrepiantes, confirmou a violação de uma mulher em Bucha. A deputada ucraniana Lesia Vasylenko vinha reportando na sua conta de twitter violações de mulheres pelos soldados russos e até de crianças de dez anos. Há imagens de mulheres assassinadas depois de violadas, com a suástica gravada na pele. Um militar russo filmou-se a violar um bebé. Entretanto as notícias tornaram-se ainda mais horríveis, com relatos de violações recorrentes em Bucha, onde pelo menos 25 mulheres (a mais nova de 14 anos) foram repetidamente violadas por soldados russos e 9 estão agora grávidas. Em Kherson. A União Europeia recebeu uma lista com 150 casos de mulheres violadas por soldados russos. A casualidade com que estas violações são vistas do lado russo é evidente numa conversa telefónica intercetada entre um casal em que a mulher diz ao marido que pode violar ucranianas desde que use proteção e não lhe conte (grau zero de absolutamente tudo).
Todas estas notícias transtornam. São mais um episódio na sucessão desde desprezível crime de guerra recorrente que é violar mulheres. Aconteceu no Kosovo, na civilizada Europa. No Congo (com mulheres e também crianças). Na invasão do Koweit pelos iraquianos em 1991. Na Síria (foram violados homens, mulheres e crianças). Na Chechénia (novamente pelo exército russo). No Iémene. Pelos rebeldes iraquianos do ISIS no Iraque com as mulheres yazidis. Na China, Coreia e Sudeste Asiático pelos japonses na mesma II Guerra Mundial – o tenebroso tema das ‘mulheres de conforto‘. A lista, infelizmente, é interminável.
Não há muito a fazer perante este cenário de horror, neste extremo oposto da Europa. Somente contribuir para a opinião pública, forçando políticos a não permitirem que o regime russo seja bem recebido de volta no conjunto dos países civilizados depois disto. Ou, já agora, a majorar sanções à conta da crueldade demonstrada. E, como recomenda Mona Eltahawy em Headscraves and Hymens, ocuparmo-nos também das lutas pelos direitos das mulheres cá (incluindo em se tratando de violência sexual), ao invés de apenas com os direitos de quem não podemos de forma nenhuma influenciar ou determinar. Se melhorarmos a situação das mulheres na nossa comunidade, contribuiremos para a melhoria da situação das mulheres em todo o mundo.
(Uma versão incompleta deste texto foi publicada há dias por lapso. Pedimos desculpa às e aos leitores.)