Há dias, numa daquelas noites em que não se tem nada para fazer e se passa as horas a mudar a TV de canal em canal até que a sonolência toma conta de nós, dei de caras com Rear Window, de Alfred Hitchcock. Apanhei-o já a meio, na cena em que um casal, sem filhos, a dormir ao relento na escada de incêndio do seu prédio por causa do calor que se fazia sentir, é forçado pela súbita chuva pesada a pegar no colchão que tinha posto ali para dormir, e a correr para dentro de casa. Apressados e desorientados, cada um a puxar o dito colchão para o seu lado, acabam estatelados no chão ao entrarem pela janela. Eu já vi o filme nem sei quantas vezes, mas o que pensei nessa altura foi algo que até então nunca me tinha ocorrido: um dos comentários mais comuns sobre Rear Window é o de que é um filme sobre o cinema, que usa um voyeur e o seu comportamento para mostrar como nós também somos voyeurs quando assistimos a estas histórias para viver por interposta e ficcional pessoa vidas mais entusiasmantes que as nossas; mas muito mais do que isso, o filme é sobre a própria vida, sobre como é a vida humana, particularmente sobre como é o casamento. E esta curta cena sobre duas pessoas casadas a caminharem em direcções opostas e a caírem no chão é – se bem que o digo não por experiência mas por mera e talvez infundada opinião – uma das coisas mais românticas já filmadas sobre o casamento.
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O filme abre com a lente de Hitchcock a descer sobre o pátio nas traseiras do apartamento de um tal L.B. Jefferies, mostrando-nos os seus vizinhos antes da sua perna partida e a sua máquina fotográfica: fotógrafo profissional, Jefferies correu para uma pista de corridas de automóveis para tirar uma fotografia e foi atingido por uma roda de carro que o obrigou a engessar a sua perna e ele propriamente dito a ficar por uns tempos numa cadeira de rodas, e a passar os dias sentado à janela a espiar os seus vizinhos: Miss Torso, a atraente bailarina cheia de pretendentes que não parecem despertar-lhe grandes entusiasmos; os recém-casados que parecem passar a vida a entregarem-se aos prazeres da carne; Miss Lonelyhearts, cuja solidão a leva a simular jantares de namoro com namorados imaginários; o pianista-compositor constantemente a fazer festas na sua casa, mas que está com dificuldades para acabar a canção que está a escrever; o vendedor e a sua acamada mulher, com quem discute frequentemente; e o par acima mencionado cujo cão parece ser um substituto para a criança que nunca tiveram.
Quando Stella, a enfermeira-barra-filósofa de Jefferies, aparece para lhe prestar os devidos cuidados médicos, ela consegue “cheirar os sarilhos” no seu apartamento: “primeiro”, diz ela, Jefferies partiu a perna. Depois, apanhou o duvidoso hábito de passar os dias à janela, a ver coisas que “não deveria ver”. Jefferies, por sua vez, também antevê problemas, na deslumbrante pessoa de Lisa Carol Freemont. Ela quer casar-se com ele, mas ele não quer casar-se com ela. Ele não “precisa” de uma rapariga da “alta sociedade” como ela; precisa de alguém disposto a acompanhá-lo nas suas aventuras, “alguém que pode ir onde quer que seja, fazer o que quer que seja e adorar”. No espaço de apenas algumas cenas, Jefferies vai acabar por descobrir que ela é exactamente o que ele está à procura.
Uma noite, Jefferies vê o vendedor e a sua mulher a discutirem, depois de ela o apanhar num telefonema furtivo. Horas depois, Jefferies ouve o grito de uma mulher, e um vidro a estilhaçar-se. E algumas horas depois, vê o marido a ir e vir do seu apartamento com uma mala na mão. “Acho que ele estava a tirar algo do apartamento dele”, diz Jefferies, fazendo a palavra “algo” soar como “alguém”. Na manhã seguinte, o seu vizinho vendedor olha pela janela e vê o cão do casal sem filhos a farejar o seu canteiro de flores. Alguns dias depois, o cão já estava a cavar à volta das flores e, naquela noite, outro grito interrompe a noite romântica de Jefferies e Lisa: o cão fora estrangulado até a morte.
Por essa altura, Jefferies já tinha partilhado com Lisa e Stella as suas suspeitas de que o vendedor matara a sua mulher. Vendo o destino do cão do pobre casal, Lisa diz: “sabia demais”. Jefferies também nota algo no canteiro: as flores estão mais pequenas do que na foto que ele tirou duas semanas antes, e “desde quando as flores ficam mais curtas em duas semanas?” Algo relacionado com o homicídio deve ter sido enterrado lá, algo que o cão cheirou, levando o vendedor a matá-lo também.
Jefferies engendra um plano para capturar o seu vizinho assassino. Depois de alguns riscos corridos, Jefferies, Lisa e Stella conseguem apanhá-lo e provar a sua culpa. Mais importante, Lisa consegue apanhar Jefferies. Não só porque ele acaba com a outra perna partida quando o vendedor o tenta matar, e fica, portanto, dependente dos seus cuidados, mas porque ele percebe que ela não é tão errada para ele quanto julgava: Hitchcock emoldura o rosto de Jefferies enquanto Lisa entra em casa depois de invadir o apartamento do vendedor, e nunca ele esteve tão apaixonado por ela como quando vê que ela “adora” “ir onde quer que seja” para “fazer o que quer que seja”, colocando-se em perigo.
O mistério “policial” foi a única coisa que o filme tirou do conto em que se baseava. Este não tinha Miss Torso, nem os recém-casados, nem Miss Lonelyhearts, nem Lisa e o romance entre ela e Jefferies. Não é preciso muita imaginação para pensar que, se Hitchcock incluiu esses elementos no filme, o fez porque tinha algo a dizer com a sua inclusão.
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Numa cena de Shadow of a Doubt, depois de Charlie (a adorável Teresa Wright) descobrir quem o seu tio realmente é e ele a confrontar sobre isso, este leva-a a um bar e ensina-lhe a natureza do mundo: “Sabes que o mundo é uma pocilga imunda? Sabes que se arrancasses as fachadas das casas, encontrarias porcos? O mundo é um inferno ”, diz ele.
Hitchcock passou toda a sua carreira a fazer-nos ver os seres humanos no seu pior. De vigaristas a assassinos, terroristas sem escrúpulos, espiões amorais, policiais autoritários, adúlteros, pervertidos e, claro, “psychos”, poucas das muitas coisas desprezíveis das quais a humanidade é capaz não foram capturadas pelas lentes de Hitchcock. Assim, seria de esperar que o realizador fosse alguém que concordasse com o tio de Charlie, ou com um “velho solitário e amargo” (como alguém diz de – e para – Jefferies em Rear Window) repugnado e cheio de desprezo pelo mundo em seu redor e os humanos que o habitam. E, no entanto, segundo todos os relatos, Hitchcock estava – pelo menos até os últimos anos da sua vida – longe de ser o que os seus filmes nos poderiam levar a crer que era. A sua neta, Mary Stone, disse um dia que os seus amigos e familiares sabiam que ele era um homem divertido e caloroso, uma “pessoa maravilhosa” que “tinha um coração enorme” e “adorava a mulher, a filha e os netos”. O mundo que ele viu e filmou para nós vermos poderia estar cheio de horror e escuridão, mas também tinha a luz e o calor que Hitchock encontrou na sua vida doméstica. E Rear Window é, entre outras coisas, um filme que reflecte essa parte da vida de Hitchcock.
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Na crítica de Rear Window que escreveu em 1954, o crítico e realizador francês François Truffaut dizia que o filme era “um filme realmente cruel”, que ia “além do pessimismo” na sua interpretação da natureza e da vida humanas: era “um jogo onde a tenebrosidade de carácter ”, argumentou ele,“ é a regra ”; Jefferies “fixa a sua lente nos seus vizinhos apenas para os apanhar em momentos de fracasso, em posturas ridículas, quando parecem grotescos ou mesmo odiosos”; tinha “uma visão do mundo que roçava a misantropia”; era “sobre a impossibilidade da felicidade, sobre a roupa suja que é lavada no pátio; um filme sobre a solidão moral, uma extraordinária sinfonia da vida quotidiana e de sonhos arruinados ”.
Mas oito anos depois, na sua série de entrevistas com Hitchcock, Truffaut disse que mudara de opinião: “Agora”, disse ele, “não vejo nada disso; na verdade, sinto que tem uma abordagem cheia de compaixão. O que [Jefferies] vê da sua janela não é horrível, mas simplesmente uma demonstração de fraquezas humanas e pessoas em busca da felicidade ”. Hitchcock concordou: “definitivamente”, respondeu. Eu iria ainda mais longe: Rear Window é, apesar de todas as aparências em contrário, um filme fundamentalmente optimista sobre a vida e a nossa existência.
Nessa mesma conversa com Truffaut, Hitchcock menciona a célebre experiência de Lev Kuleshov, no qual “tu vês um close-up do ator russo Ivan Mosjoukine. Isto é imediatamente seguido por um plano de um bebé morto. Voltamos a Mosjoukine outra vez, e tu vês compaixão no rosto dele. Então tu tiras o bébé morto e mostras um prato de sopa, e agora, quando voltas a ver o Mosjoukine, ele parece faminto. No entanto, em ambos os casos, eles usaram o mesmo plano do actor, o rosto era exatamente o mesmo”. Isso foi algo que ele reproduziu em Rear Window, tentando capturar o que ele chamou de “a mais pura expressão de uma ideia cinematográfica”: “olha para a cara do Stewart a olhar pela janela para um cão que está a ser carregado numa cesta. Volta a Stewart, que tem um sorriso gentil. Mas se no lugar do cão mostrares uma rapariga seminua a exercitar-se em frente da sua janela aberta, e voltares para um Stewart sorridente, desta vez ele vai ser visto como um velho tarado”. Hitchcock, no entanto, não se limitou a usar essa técnica de manipulação do espectador enquanto técnica de montagem: usou-a também figurativamente, com o diálogo e a narrativa do filme, mostrando-nos pontos de vista diferentes e contrastantes sobre o casamento para manipular o público, inicialmente fazendo-o sentir-se solidário com a relutância de Jefferies em se casar com Lisa, para mais tarde o levar a acompanhar Jefferies na sua conversão. Hitchcock usa a falta de apreço de uma personagem pelo casamento, e somos compelidos a concordar; depois, usa outra personagem apresentando o argumento contrário, e nós mudamos a nossa opinião; do início ao fim, o ponto de vista do filme sempre foi exactamente o mesmo, mas nós só o compreendemos no final.
Hitchcock começa por nos dar a diatribe mal-humorada de Jefferies contra o casamento, um cenário desolador em que ele chega em casa e encontra apenas os sons infernais de electrodomésticos a conspirarem com os que saem da boca de uma “mulher chata” para darem cabo da sua sanidade mental e bem-estar. Mas de seguida, apresenta-nos Stella, dizendo que “qualquer homem está pronto para o casamento quando a rapariga certa aparece, e Lisa Freemont é a rapariga certa para qualquer homem com metade do cérebro que consiga abrir um dos olhos”, e que “ alguns dos casamentos mais felizes do mundo começaram sob ameaça de uma arma”. Poder-se-ia pensar que Hitchcock e o seu filme não tomam partido, que apenas apresentam esses argumentos contrastantes e deixam para o nosso juízo ou falta dele a decisão de em qual deles acreditar. Mas Stella, a filósofa-barra-enfermeira que defende que Jefferies se deveria casar com Lisa, é retratada em todo o filme como a voz da razão e do bom senso, alguém cujas advertências e palpites são constantemente provados como certos. Por que razão seria a sua opinião acerca do casamento considerada menos válida? Sobre esse assunto, como acerca de todos os outros, Stella é apresentada como uma espécie de coro de uma tragédia grega, alertando a audiência para o que vai acontecer e fazendo com que se perceba qual é a moral da história. E caso tal não seja o suficiente para o público a entender, Hitchcock usa Grace Kelly como o rosto, corpo e cativante personalidade de Lisa Fremont, e realmente qualquer homem com metade do cérebro que consiga manter um olho aberto concorda que ela é a rapariga certa para qualquer um.
Não é difícil perceber por que razão Truffaut achava que Rear Window era um filme misantrópico sobre a impossibilidade da felicidade matrimonial. Afinal, Hitchcock mostra-nos Lisa a pegar numa Harper’s Bazaar mal vê que Jefferies já não está a olhar para ela, deixando cair um livro sobre os Himalaias, indicando que os dois nunca terão exactamente os mesmos interesses. Mostra-nos cada metade do casal sem filhos a empurrar o colchão em direções opostas, ou os recém-casados passando dos dias de perdição carnal permanente aos dias de discussões sem fim, ou que as pessoas podem sentir-se sós como Miss Lonelyhearts (ou até Miss Torso), ou que em alguns casos as coisas podem ficar tão más que o marido acaba a matar a mulher. Rear Window retrata-nos nos nossos aspectos mais fracos, mais patéticos, mais desprezíveis. Mas também defende a possibilidade do heroísmo, da justiça e até mesmo do amor: Miss Torso consegue ver o seu namorado a voltar para os seus braços. Miss Lonelyhearts nunca chega a suicidar-se, e até acaba por se apaixonar – reciprocamente – pelo pianista. As duas metades do casal sem filhos podem não se ter movido no mesmo sentido quando a chuva começou a cair naquela noite, mas não deixam de o fazer juntos; podem discutir e discordar e cair no chão ocasionalmente, mas quando o filme chega ao fim, eles ainda estão casados.
Quanto a Jefferies e Lisa, embora olhem pela janela para o pátio e vejam tudo o que pode correr mal quando duas pessoas partilham as suas vidas uma com a outra, chegam ao final do filme aparentemente dispostos a fazer exactamente isso, apaixonados um pelo outro e a acreditarem que encontraram um terreno sobre o qual construir uma vida em comum. São duas pessoas que foram confrontadas com tudo o que pode correr mal quando duas pessoas se apaixonam e ainda são corajosos o suficiente para embarcarem numa aventura mais arriscada que escalar os Himalaias: passarem a vida juntos.
E o que poderia ser mais optimista e esperançoso do que isso?