Taipei, início de setembro. Andou por lá o International Press Group on Gender Equality, organizado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de Taiwan. As convidadas deste grupo, de uma forma ou de outra ligadas aos medias (mais ou menos tradicionais), vinham de 16 países, desde Austrália e Palau no Pacífico até à Nicarágua, México e Saint Vicent and the Grenadines na América Central e do Sul, passando pela Europa (eu era uma das quatro pessoas europeias), Médio Oriente, Japão, Vietnam e Coreia do Sul. Todas mulheres, exceto o representante de Espanha, do jornal ABC, que foi um digno representante do sexo masculino no grupo.
Esta diversidade permitiu notar bastantes pontos em comum na condição feminina pelo mundo fora. Apesar dos países terem níveis de paridade e igualdade de género muito díspares (incluo Taiwan), na verdade há problemas comuns a todos, mesmo se em grau diferente. O custo das creches quando os filhos são pequenos, a discriminação laboral das mulheres (sobretudo grávidas e depois de terem tido filhos), o gender wage gap, a falta de representação nos lugares de decisão política e económica, até a forma como os políticos (masculinos) lidam com as pretensões femininas – como bem descrevia Fan Yun, a Embaixadora para os Direitos das Mulheres em Taiwan, implementam as medidas mais minimalistas e escassas que conseguem de modo a obterem os maiores ganhos eleitorais junto das mulheres. Tal qual como cá e como em todo o lado. As tarefas domésticas e de cuidados aos filhos e familiares que recaem quase todas em cima das mulheres. A lista é conhecida e infindável.

Taiwan é o país mais progressista no que toca à igualdade de género naquela zona do globo (Ásia Oriental, Ásia do Sul e Sudeste Asiático). E tem algumas estatísticas que não envergonham de todo. Tem uma mulher presidente, Tsai Ying-wen – que, como fazem questão de relevar os oficiais com que contactámos, tem carreira política em nome próprio; não é herdeira política nem de pai nem de marido, ao contrário de tantos exemplos de mulheres com cargos políticos cimeiros, até em países mais igualitários. (Hillary Clinton vem à cabeça.) 38% dos lugares do parlamento são ocupados por mulheres. Cerca de um terço das 1,4 milhões de pequenas e médias empresas de Taiwan (que são o grosso da atividade produtiva do país) é propriedade de mulheres. O gender wage gap é de 16% (abaixo do português).
Tem também uma legislação bastante abrangente neste âmbito da igualdade de género. Existem leis para prevenção e punição de violência sexual, incluindo de menores, para o assédio sexual, para a igualdade e contra a discriminação das mulheres no mercado laboral. A constituição chinesa de 1947 (pré maoísta) que foi, digamos, transportada para Taiwan em 1949 quando os nacionalistas de Chiang Kai-shek perderam a guerra civil e se refugiaram em Taiwan, garante a igualdade independentemente do sexo (e raça, religião,…). Existem quotas para a representação política feminina.
E, por fim, há um notório cuidado do poder executivo com os assuntos da igualdade de género e da paridade. A igualdade de género é ensinada nas escolas desde o jardim de infância (quatro horas por semestre) – e, de facto, toda a gente reconhece que as gerações mais novas são mais abertas à necessidade desta igualdade. Existe um Departamento para a Igualdade de Género e uma Comissão para a Igualdade de Género, na dependência do primeiro-ministro e do vice-primeiro-ministro, com ligação a todos os ministérios do governo. Já aqui referi o departamento vocacionado para o apoio à atividade empresarial das mulheres de Taiwan. Fornecem financiamento público a várias fundações, públicas ou privadas, que trabalham com mulheres desfavorecidas ou vítimas de violência ou estudam assuntos de género e informam a população sobre eles.

Todos estes esforços e incentivos dão frutos, claro, ou não estivesse Taiwan com lugar destacado neste campo em toda a Ásia. Por todo o lado se nota a participação laboral das mulheres, um dos nossos dois anfitriões do MOFA, por exemplo, é uma mulher, Sherry Cheng, com inglês impecável, culta, eficiente, profissional, com sentido de humor, um alto quadro do ministério. A participação cívica feminina é também evidente: as ONG que visitámos viviam sobretudo de ativismo de mulheres. Na cultura é parecido. Há festivais de cinema femininos (donde: há realizadoras suficientes para preencherem estes festivais) e várias escritoras populares nas camadas mais novas são mulheres.
Em todo o caso, todas estas boas políticas e preocupações do governo embatem na realidade cultural e social de Taiwan, que é ainda adversa à paridade. Uma boa legislação contra o assédio e a violência sexual não garante que as vítimas destes atos apresentem queixa – pelas razões do costume de todo o lado. As empresas, se muito pressionadas para seguirem leis e guidelines estritas de não discriminação laboral das mulheres e de proteção contra o assédio, ameaçam deslocar-se para a Mainland China, onde não se apoquentam com estes pormenores. As mulheres são prejudicadas nas heranças e, quando não são, muitas delas são pressionadas pela sociedade a prescindir do que receberam em favor dos herdeiros masculinos. Apenas 54,9% das mulheres faz parte da população ativa. Nas populações aborígenes de Taiwan (não chinesas), a condição feminina é ainda mais desafiada (com menores escolarização e poder económico das mulheres). Como recusa às pretensões profissionais de mulheres cada vez mais escolarizadas, muitos homens de Taiwan preferem casar com mulheres dos países do Sudeste Asiático, mais pobres e que se contentam em ser mães e donas de casa em troca de uma vida melhor.

A violência doméstica é um problema significativo, bem com a violência e a exploração sexual. Existe uma hot line estatal para a violência doméstica e sexual, que recebe por ano 100.000 denúncias de violência doméstica (75% de mulheres, 20% de crianças e 5% de homens). E se legalmente qualquer oficial com responsabilidade (médico, professor, superior hierárquico) é obrigado a reportar qualquer indício de qualquer tipo de violência, na verdade muitas vezes recusam saber as histórias de agressões sofridas para não serem obrigados a reportar (deixando assim as vítimas ainda mais isoladas). Se me garantiram que há uma muito alta taxa de resolução e condenação das queixas de violação (as que são reportadas, claro), a taxa de condenação para a violência doméstica é baixa. As mulheres políticas são – como em todos os cantos do planeta – criticadas muito mais violentamente que os homens pelos colegas e pela imprensa e opinião pública, o que incluí (como de costume) insultos sexualizados. O número de mulheres no parlamento não é indigente, no entanto há uma muito menor percentagem de mulheres no governo (aproveitando-se a falta de quotas, claro – parece Portugal – nunca foram mais de 20% dos governantes) e nos governos provinciais (as mulheres são aqui apenas 15%).
Numa galeria de arte contemporânea que visitei, informaram-me que não representavam nenhumas mulheres artistas; na verdade nem me souberam dizer nenhuma mulher artista de renome em Taiwan. O que significa que as mulheres estão culturalmente arredadas de algumas profissões e têm mais dificuldade em ganhar visibilidade. (O que se replica por todo o mundo. Há poucos meses em Londres uma galeria de arte contemporânea em voga entre mais de vinte artistas apenas representava duas mulheres.)

Em todo o caso, em Taiwan impressionaram-me as mulheres que conheci nas várias organizações que visitámos. Em Taichung – a terceira maior cidade do país (ainda assim com mais de quatro vezes os habitantes de Lisboa) – a garra existia mas notava-se um menor cosmopolitismo. Porém em Taiwan as mulheres eram elegantes, cuidadas, articuladas, inteligentes, informadas, por vezes mesmo brilhantes, francas e sem rodriguinhos, ocidentalizadas, leves, com humor, informais. Tanto as mulheres que conhecemos nas ONG como as com cargos oficiais para os direitos das mulheres (como a Embaixadora Fan Yun ou a Vice Diretora da Fundação [pública] para a Promoção e Desenvolvimento dos Direitos das Mulheres, Sunny Huang). Por contraste, tirando um almoço com oficiais do Ministério dos Negócios Estrangeiros (que tinham a boa patine do cosmopolitismo), os homens com cargos oficiais com que contactámos eram mais formais, pomposos, rígidos, menos proficientes em inglês. Foi uma disparidade curiosa.

Mas ser uma mulher altamente escolarizada e bem sucedida em Taiwan tem um custo. (Bem: onde não tem?) A taxa de mulheres com alto nível de escolaridade solteiras é significativo. Por que razão? Porque os homens, como referi, preferem casar com mulheres mais moldáveis e mais pobres da Ásia do Sudeste. E, por outro lado, porque as próprias mulheres muito escolarizadas recusam casar: não querem ter os custos associados aos casamentos tradicionais – desde arcar com todas as atividades domésticas até deixar a sua família para se integrar totalmente na família do marido (segundo a tradição chinesa).
As mulheres, bem como os homens jovens que fomos encontrando nas ONG – conscientes dos problemas da (des)igualdade de género e empenhados nas soluções – apaziguam-nos. Bem como os esforços governativos e as atividades e o titânico trabalho de apoio e de lobbying para as causas femininas das várias ONG. Algumas destas têm parte do financiamento público – como a Foundation Garden of Hope, que acolhe mulheres vítimas de violência doméstica, de violência sexual (incluindo abuso sexual por familiar) e de exploração sexual.
No meio da hospitalidade oriental – atenta, cordial, inexcedível – com que o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Taiwan nos recebeu, pudemos contactar com a visão oficial do governo sobre o que está a ser feito, mas também com as organizações que ainda não estão satisfeitas com os progressos já conseguidos. Numa delas, Lin Shiou-yi, da Awakening Foundation, afirmava mesmo que ter uma presidente mulher não tinha trazido nenhuma ajuda às políticas para a igualdade de género. E se isto é uma crítica ao governo de Taiwan, também é um elogio (meu) pela abertura demonstrada ao permitir-nos ter contacto com estas opiniões contestatárias. A transparência é sempre um bem em si mesmo em se tratando da governação, e que potencia os bons resultados em todos os setores – incluindo na promoção da igualdade de género em Taiwan.
