Estava um dia horrível. Chuva, vento. Tinha sido entrevistada de manhã para uma revista, e à tarde tinha tido uma reunião com o meu advogado. O telefone começa a tocar, e eu, ansiosa por tirar o vestido e a maquilhagem, e sentar-me com as minhas filhas, atendo. Começo a ouvir: “O teu marido ganha bem, porque andas atrás de um sonho?”. Não percebi, a principio, o que me queria dizer. “O quê?”. E ela repetiu: “Sim, Inês, tens um marido que ganha bem. Andas atrás disso porquê? Ele até te trata bem”. Repetido até à exaustão na minha cabeça, na tentativa de lhe arranjar explicação, continua a não fazer sentido para mim. Repetido até ao mais intimo do que para mim é ser mulher. Fiquei atónita. Ela não sabe o que está a dizer. A vida calcou-a muito, levou-lhe o gosto em ser mulher cedo demais. Tentei, ainda assim, justificar. Sempre fui muito consensual: a luta só pode ser feita através do consenso. Para logo vir uma revolta de dentro de mim: andamos a lutar contra quê afinal? Contra os homens machistas, contra as mulheres machistas, contra quê?
Desligo a chamada, e começo a chorar. Era mulher, repetia eu. Era mulher e não quer que seja activista pelos direitos das mulheres. Era família. O que significa que há parte da minha família que fica revoltada por eu andar nesta luta. Porquê? E se fosse o contrário? Se fosse ele a sair de casa para ir para uma manifestação pelos direitos dele? Caso a mulher queira ser mulher e impor-se neste mundo de homens, tem várias lutas pela frente. Uma delas começa no centro da família.
Este identificar do objecto da nossa luta tem-me tirado horas de sono. Porque o reparo veio de uma mulher, e porque as mulheres deveriam querer o melhor umas para as outras. Porque tenho de ser eu a abdicar do meu sonho, da minha vida profissional, da minha vontade? As mulheres não têm de abdicar de nada, estão a ouvir bem? Têm um sonho? Corram atrás dele. Se o vosso sonho for ficar em casa a cuidar dos filhos, fiquem. Se o vosso sonho for criar políticas sociais para melhorar o país, criem. Se o vosso sonho for ser modelo, pois que sejam. O que importa aqui é não desistir. Já vi mulheres em demasia a desistir.
Toda a minha vida vi mulheres que desistiam dos seus sonhos. Desistiam porque era o dever. Porque o sonho do marido era sempre maior. Maior que o delas. Ela é que era a mãe. Ela é que tinha obrigação de desistir. De tudo. Como se os filhos não fossem dos dois. Como se metade dos genes das crianças não fossem de um pai. Não. A vontade dele é que valia mais. Sempre foi assim. Está na altura de dizer que não. Lá em casa, na minha, há lugar para os sonhos de todos. E está tudo muito bem assim!
Sou mãe de 3 meninas. Eu e o pai destas crianças trabalhamos, o dele é um emprego mais exigente que o meu, pese embora eu tenha de fazer uma viagem de 4 horas todos os dias para chegar ao meu trabalho. Temos um entendimento perfeito no que diz respeito às minhas ausências para ir atrás do tal sonho. Ele, como todos os pais deveriam saber, sabe que tem também um papel no que diz respeito aos cuidados com as filhas. A fazer as refeições, a vesti-las, a brincar com elas, a passar tempo com elas.
As minhas filhas têm idades muito próximas – 4 anos, 2 anos e 7 meses – estão em fases que exigem muito dos mais próximos, e se existe alguém que ache que a educação e o saudável desenvolvimento delas pode ser feito apenas com a presença da mãe, desengane-se.
Se tivesse apenas uma filha, também não era possível. Em termos logísticos, é bastante exigente. Já para não falar que queremos criar seres humanos decentes e estruturados mentalmente. Isto só é possível com a presença constante dos 2: pai e mãe, neste caso. As crianças sentem quando existe um desinvestimento na vida delas, todas. Dito isto, nenhum dos 2 desinveste das nossas filhas, que ambos escolhemos ter.
Causa uma estranheza alucinatória uma mulher querer que outra abdique da sua vida profissional porque o “marido ganha bem”. Causa ainda uma estranheza maior esta mulher dizer-me que o facto de eu lutar pelos direitos das mulheres implica que as “outras pessoas” pensem no homem que escolhi para ficar comigo como um agressor.
Casei com um homem que partilha comigo tudo relacionado com as nossas filhas, e assumimos os 2 que esta coisa da parentalidade é difícil para ambos. Que ambos aprendemos com as nossas filhas. Que ambos temos dificuldades. Que ambos precisamos de ajuda. E para estarmos casados há 5 anos, com 3 filhas, acreditem, que temos de nos ajudar mutuamente.
Sou filha de uma mulher que, já depois de casada e com 2 filhas, fez a sua licenciatura, e foi bem-sucedida. Porque engravidou aos 18 anos, teve de interromper a escola, retomando-a depois. É um exemplo. Sempre. Ficámos aos cuidados do meu pai durante 5 anos, e nunca nos faltou mãe. Sempre tivemos a mãe, ainda que mais ausente, compensava tudo quando estava presente. É este exemplo que sigo, sempre. As minhas filhas não serão felizes se eu não for feliz. Este é o meu mantra. A maternidade não deve impedir-nos de ser mais.
Ser mãe era um sonho. Com todo o esforço que isso traz à vida. Garanto-vos que se esse esforço for partilhado, tudo se faz. Já existem mulheres que não querem ficar em casa a cuidar dos maridos. E isso é bom. Ganhem eles quanto ganharem! Isto não deve ser motivo de criticas negativas por parte de ninguém, antes pelo contrário. Valorizar os esforços das mulheres, enaltece-nos.
Eu, enquanto filha, nunca exigi mais à minha mãe. Tenho um orgulho enorme em tudo o que ela conseguiu alcançar na vida. Exigir o mesmo para mim não é um capricho. É um direito. Eu, enquanto mãe, não tenho o direito a colocar-me no lugar do pai. Casei com um homem que gosta de ser pai. Não é privilégio. É assim que devia ser com todos. Ou então mais vale não o serem.