Violação como crime público, sim, mas não chega para quebrar a impunidade

0

Nesta semana foi entregue uma petição à Assembleia da República, assinada por mais de 100.000 peticionários, pedindo alterações legislativas que tornem a violação crime público. O BE, mais uma vez, também entregou propostas legislativas para tornar públicos os crimes de violação, de coacção sexual e de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência.

Já escrevi no Público sobre este tema da violação como crime público no ano passado, aquando do chumbo de outras propostas neste sentido. Um crime público, relembro, é um crime que qualquer pessoa, conhecedora do crime, pode denunciar ou apresentar queixa; atualmente os crimes sexuais são semi públicos, i.e., dependem de queixa pela vítima. Pelo que vou somente repetir aqui o que enforma a minha posição.

Concordo com a qualidade de crime público para os crimes sexuais. Por uma razão simples: é muito importante quebrar a impunidade deste tipo de crimes. Atualmente é um facto indisputável a impunidade de crimes de violação e abusos sexuais. Nos Estados Unidos estima-se que anualmente mais de 200.000 violações e abusos sexuais não sejam denunciados às autoridades. Por outro lado, no mesmo país, menos de 1% das violações levam a condenações. Na Grã-Bretanha a percentagem é semelhante e, apesar destes crimes contra mulheres serem mais visíveis atualmente (ou, calhando, por isso, como reação para pôr as mulheres no lugar perante maiores e mais sonoras reivindicações), o número de acusações tem diminuído.

Quem comete crimes sexuais tem a expetativa – correta – de que nada de mal lhe vais suceder. Provavelmente nem será mais incomodado com esse nefasto assunto. O que, claro, aumenta a probabilidade da ocorrência de violações e abusos sexuais caso o criminoso para aí seja inclinado. Um criminoso sexual conta com a normal hesitação da vítima em reportar crimes deste tipo. Mais: conta que nos tempos seguintes à violação ou ao abuso a vítima não esteja em condições de saúde mental para se decidir a apresentar queixa e passar por todo o processo desagradável destas investigações. Ainda mais: o criminoso conta com a cumplicidade das leis, dos processos de investigação e dos investigadores e juízes num sistema que está desenhado para garantir a impunidade de crimes sexuais. (Basta vermos as recorrentes e absurdas decisões dos tribunais portugueses, incluindo os que envolvem crianças.)

Quebrar a impunidade de crimes sexuais é urgente. Se a queixa de uma violação não estiver só sobre a cabeça da vítima – que inicialmente provavelmente quererá afastar-se do que viveu e não estará com vontade de reviver o evento traumático -, então é mais provável que a dita queixa aconteça. Logo, diminui a probabilidade da impunidade. Porque, havendo queixa de terceiro, a vítima pode sentir-se reforçada na centelha interior (que existe sempre) que pede justiça e, afinal, colaborar com as polícias. Porque se vários crimes sexuais forem reportados por pessoas diferentes para o mesmo homem talvez (talvez – não é certo, dada a vontade de se desculpar violência contra mulheres) os investigadores percebam que não é coincidência infeliz. Porque havendo queixa (de qualquer pessoa), o criminoso (se reconhecido) será sempre obrigado ao incómodo da investigação; já não passa totalmente incólume. Porque a queixa feita por um terceiro é logo uma validação da credibilidade da vítima, alguém que acredita que algo de muito mau ocorreu mesmo, sendo, portanto, mais difícil descredibilizar totalmente a denúncia e a vítima.

Isto dito, também é preciso respeitar a vítima. Sobretudo quanto aos seus tempos para se curar. Uma vítima de violação ou abuso sexual desenvolverá stress pós traumático, geralmente, nestes casos, de modo muito imediato. Mais tarde – é da natureza humana e da cura típica do trauma – terá vontade/necessidade de contar a sua história. E procurará reparação pela comunidade do que lhe sucedeu – uma vez que um trauma também é sempre uma quebra, uma fissura que cresce na relação da pessoa com a comunidade.

Assim, tão importante como tornar crime público uma violação é eliminar o prazo de seis meses para apresentação de queixa. Ou se retira de todo o prazo ou se estabelecem pelo menos 10 anos. E, de igual forma, os crimes sexuais (tal como os homicídios) não podem ter prazo de prescrição.

Ao lado de tudo isto é crucial, claro, dar formação adequada a polícias, procuradores e juízes sobre crimes sexuais. Ao nível dos comportamentos normais das vítimas (que podem ir, no momento, de congelar e não resistir até negar, depois, a violação – porque se precisa, desde logo, negar para si própria). Dos tempos que se demora até ser imperioso contar o que sucedeu. Das consequências de violações e abusos para as vítimas. Bem como, claro, de se eliminar o mito falso e daninho da abundância das acusações falsas. Mentira mitológica que é propagada para ter o efeito que tem: as vítimas de violação serem tratadas com imediata falta de credibilidade, alguém que provavelmente está a mentir, com os polícias investigadores muito propensos a decidirem que a queixa é uma alegação falsa (só com base no seu ‘discernimento’) e, consequentemente, as investigações de crimes sexuais serem arquivadas e não seguirem para tribunal. Esta mistificação é uma grande razão que contribui para o infelizmente normal resultado de não acusação nestes crimes, concluiu um estudo para a London Metropolitan Police. Também serve, claro, de dissuadir as vítimas de denunciarem; ninguém tem imensa vontade de ser tratada como mentirosa.

É preciso este cabaz todo para que os crimes sexuais deixem de estar só nos consultórios dos psicólogos e psiquiatras e passem para os tribunais (e neles tenham um tratamento digno). Votemos nisto.

Artigo anteriorArma de guerra: violar
Próximo artigoAs mulheres que trucidaram Amber Heard
Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

Deixe um comentário. Acreditamos na responsabilização das opiniões. Existe moderação de comentários. Os comentários anónimos ou de identificação confusa não serão aprovados, bem como os que contenham insultos, desinformação, publicidade, contenham discurso de ódio, apelem à violência ou promovam ideologias de menorização de outrém.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.