Londres. Brexit. E uma peça de teatro inquietante.

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Imagem de National Theatre

I’m Not Running – e não temam, não pretendo fazer uma crítica a uma peça teatral por estes dias em cena no National Theatre (um edifício que merece visita por direito próprio, muito adequadamente a meio de um dos meus passeios londrinos preferidos, ao longo da margem sul do Tamisa) – presta-se a várias cogitações femininas e feministas (e sobre o zeitgeist) apropriadas ao ano da graça de 2018. É uma peça política, mostra o processo de decisão (incluindo as partes do processo de decisão passadas décadas antes e quando ainda a protagonista não sabia que estava a tomar uma decisão) de uma Member of Parliament britânica decidir candidatar-se, ou não, à liderança do partido trabalhista. Por outro lado, não é uma peça política. Ou é, mas não se fica por isso.

É certo, existem alguns pormenores que exibem a pantomina em que a política se transformou – a conferência de imprensa inicial provoca gargalhadas à conta do comportamento típico dos jornalistas numa era onde todas as palavras são escalpelizadas e podem ter, afinal, todos os sentidos. Mas não é uma peça que entre na luta política entre trabalhistas ou conservadores, brexiters ou remainers.

De certa maneira reflete o estado em que encontrei Londres. Estive lá nos dias depois do referendo de 2016 e a cidade estava em choque. Os quadros de ardósia colocados à entrada dos bares faziam frequentes referências ao resultado. Ainda se viam, mesmo nos bairros posh de Kensington, Chelsea, Notting Hill ou Belgravia as folhas apelando ao voto (geralmente Remain) nas janelas daquelas casas de milhões de libras (que entretanto já desvalorizaram). Não era preciso forçar muito a conversa sobre a surpresa eleitoral: toda a gente tinha muito a dizer, sempre cheios de emoção, sobre a justiça ou injustiça do resultado. Mas isso foi então, quando os imbróglios das negociações ainda não tinha ficado à vista, ainda havia quem acreditasse no autocarro a prometer dinheiro para o NHS e que seria facílimo escorraçar imigrantes enquanto se mantinha um generoso acordo de comércio livre com a UE. Ah, e que o resto do mundo cairia nos braços do UK para com ele comerciar, como se ainda fosse 1890.

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Londres, junho de 2016

Por estes dias Londres pareceu-me em negação. Ninguém refere o Brexit em conversas, exceto se questionado (e houve quem se esquivasse), mesmo com os debates nos Comuns a ferro e fogo. Enquanto não tiverem de lidar com o assunto no dia a dia, far-se-ão de desentendidos sobre o futuro. Porque, como dizia um octagenário com quem falei ao jantar antes de ir para o teatro, ‘I really don’t know [if there’s going to be a brexit]. My heart wants to leave, my head wants to stay, either way it will be very bad. I’m very sad for my grandchildren.’

No entanto, mesmo a discussão sobre o NHS – que tanto agitou a campanha do referendo – é suave em I’m Not Running. As discussões políticas estão praticamente ausentes da peça.

Bom, é como quem diz. Porque o que é mais político do que a exclusão de metade da população dos centros de poder político? (Eu avisei que chegaríamos ao feminismo. Por alguma coisa escrevo este texto.)

Uma (feliz – refira-se) estratégia de alienação perante a realidade do brexit é distraírem-se com um assunto em voga este ano em Londres: o centenário do voto das mulheres. Quando lá estive em Março, o mês das mulheres, o tema estava por todo o lado. Até a Hatchard’s, a conservadora livraria dos hardbacks (sempre poiso a não perder), tinha uma montra cheia de leituras feministas. (Onde, claro, não faltavam nem a Jane Austen nem biografias de Margaret Thatcher.) Ricardo Arruda já aqui referiu a exposição Votes for Women. Dentro do National Theatre estava também uma exposição sobre o sufragismo e a sua expressão nos meios teatrais eduardianos. E I’m Not Running foi encomendada com o claro propósito de se enquadrar neste debate, a continuar, sobre a participação política das mulheres. Agora já não só como votantes, mas também como objeto da preferência do voto dos eleitores e como suas representantes e governantes.

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Montra da Hatchard’s, Março 2018

Como Pauline – a protagonista, uma Siân Brooke com a suavidade e a contundência nas doses certas – às tantas diz ao seu ex namorado de faculdade  Jack, o outro candidato a líder do partido, ‘There is a Labour tradition that I understand better than you: never put a woman in charge. There is always an excuse, it is never the right woman, it is never the right time.’ Quite, apetece dizer. Quem nunca reparou como todas as desculpas, às vezes tão abstrusas que nos questionamos como os autores não têm vergonha de as fazer, e que evidentemente nunca em vinte universos seriam aplicadas a homens nas mesmas circunstâncias, mesmo se muito mais medíocres, são usadas e abusadas para justificar a não escolha ou o não apoio de mulheres? As mulheres têm de ser perfeitas e estonteantemente brilhantes para merecer confiança e apoio; aos homens basta serem mais ou menos.

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Exposição Suffrage and the Edwardian Stage, National Theatre, Londres

As cenas e os diálogos não se detêm (não é o fio condutor da peça) nas vicissitudes das mulheres na política. Mas estas ficam escarrapachadas na mesma, quando o dito Jack percebe que a candidatura de Pauline é uma possibilidade real. Informa-a como não é qualificada e capaz (o costume: as mulheres nunca são qualificadas e capazes, só se forem as estrelas mais cintilantes, enquanto os homens mais medianos e desinteressantes são sempre bom material para tudo). Diz-lhe que a atacará de forma baixa – e que Pauline merece que ele o faça. Claro. Conheço muitos portugueses com a mesma opinião. As mulheres merecem sempre levar com todas as carradas de lama que alguns homens (e mulheres, ah pois, que há muitas mulheres dispostas a fazerem o trabalho sujo dos homens, e ainda levar com as culpas, como de resto se vê por recentes eventos do grupo parlamentar do PSD) quando ousam disputar os lugares que sempre foram dos homens – e, escusado dizer, devem continuar a ser.

Ah, também: a possível candidatura de Pauline não é decidida por Pauline em função de si própria e das suas ideias e capacidades, mas é sobre ele, Jack, para se vingar dele. Como se sabe também, tudo gira sempre à volta dos homens, nada na vida de uma mulher – na cabeça dos machistas mais ou menos assumidos – se explica sem ser em função de um ou outro homem.

E nisto passamos para a outra cogitação feminina/feminista da peça. Que na verdade não diz só respeito às mulheres (nunca diz só respeito às mulheres). Porventura é até mais um problema de masculinidade. Jack é aquele tipo de homens que é capaz de amar uma mulher mas não de gostar dessa mulher, como Pauline ainda na universidade lhe diz. Que, na verdade, até odeia a mulher que ama. É o homem que se sente sempre atraído e que deseja mulheres independentes e fortes e bem sucedidas, mas que continuamente mostra o ódio que tem por essas mulheres. Inclusive na intimidade e no sexo. Esta mistura de desejo e ódio de Jack por Pauline que perpassa por toda peça, é algo muito real e frequente nas relações (e na intimidade e na sexualidade) da segunda década do século XXI. E, na verdade, é esta bipolaridade masculina que dá o salto e continua a ser exposta quando as mulheres têm visibilidade política, empresarial ou mediática. É algo que merece reflexão: tanto esta malsã dualidade ódio/desejo nas relações pessoais que tantos homens carregam, como o facto de muitos, muitos homens tomarem como missão de vida atacarem publicamente (com orgulho e alegria, apesar das figuras vis a que publicamente se prestam) mulheres que se destaquem, algo tão visível nas redes sociais. Há muitos homens que estão doentes – e digo-o preocupada e não por retaliação no contexto de alguma guerra dos sexos.

I’m Not Running foi escrita por David Hare, um xy. O que mostra como há homens nesta causa importante. Outros há que nos apoiam. E homens capazes de ver e expor as características malsãs, na política e na intimidade, de outras masculinidades mais retorcidas. Porque não é uma lei natural, nem saudável, homens odiarem mulheres.

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Exposição Suffrage and the Edwardian Stage, National Theatre, Londres
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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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