Perder os filtros

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Imagem de Isabel Santiago

A culpa não é só das redes sociais. Antes já existiam programas de televisão em que as pessoas para lá telefonavam a dar as suas sentenças e caixas de comentários dos jornais. Não sei se estes produtos televisivos sobreviveram, mas as caixas de comentários permanecem em toda a sua glória.

Não obstante todas as maravilhas destas formas comunicacionais, olhando para o que tem sido produzido desde que foi noticiada a violência policial excessiva no bairro Jamaica no Seixal, vazado nas caixas de comentários dos jornais e nas redes sociais, é impossível não simpatizar por um segundo ou dois com regimes totalitários onde as pessoas sejam mais receosas na hora de opinar publicamente. (Ok, vou-me auto vergastar.)

Sempre que o assunto é racismo ou violência sexual, a internet torna-se um bocadinho mais insalubre que os tubos que transportam os esgotos até às ETAR. O que se lê é tão próprio de criaturas carregadas de ódio, demonstrando um maligno regozijo com o sofrimento alheio (seja uma violação seja uma carga policial), animalescas, tudo isto em tais proporções que a reação sensata é preocuparmo-nos se nos cruzamos com aquela gente na rua. E cruzamos, inevitavelmente.

Sim, atirar pedras à PSP não se admite. Sim, os bairros problemáticos têm também gente bera e criminosa (ao lado de gente boa), qualquer que seja a cor da pele dos moradores. Sim, a polícia foi chamada porque havia agressões e violências no bairro – preferem que da próxima vez não vá? Sim, vandalismos a carros e a caixotes do lixo e cocktails molotov atirados a esquadras são inaceitáveis. Sim, a polícia bateu mais do que devia a pessoas desarmadas. Sim, Mamadou Ba e Joana Mortágua excederam-se na linguagem e atiçaram os ânimos com objetivos eleitorais. Sim, polícias não podem passear-se pelas redes sociais ameaçando e insultando pessoas e grupos de portugueses.

Para coroar este retrato onde todos ficaram com esgares feios, o país entregou-se a uma torrente de ódio racista. Do outro lado, ódio à polícia, tratada como se fosse uma organização de psicopatas. Os que tentam compreender a violência antipolicial com pobreza e péssimas condições de vida, não estendem igual complacência aos polícias, que quando sob violência e ameaça também podem reagir com excesso. E vive-versa. Não há seres etéreos e perfeitos se não na ficção de má qualidade.

Perdeu-se a vergonha de dizer publicamente certas coisas que, anteriormente e pelo desrespeito que continham a terceiros, ficavam por dizer ou eram ditas em grupos de amigos de confiança. Com as redes sociais e as caixas de comentários, os portadores de ódio descobriram outros portadores de ódio, perceberam que eram numerosos e sentiram-se legitimados para afirmarem placidamente as maiores alarvidades perante o mundo falante de português.

O machismo e o racismo (e a homofobia, não pode faltar) tornaram-se opiniões aceitáveis, a ombrear com outras. Stalkar e insultar obsessivamente feministas (perdão: feminazis) na net é tão válido como, sei lá, comentar a programação do Dona Maria II. Decretar que a pretalhada é raça inferior (por pessoas que claramente teriam a ganhar se algures os seus antepassados tivessem feito algum cruzamento de raças) está a par com opinar sobre o último livro de Julian Barnes.

Confesso que não sei bem como se há de lidar com este fenómeno da internet. Os mecanismos atuais – denunciar às várias plataformas – não são suficientes. Tenho um amigo que me diz que as caixas de comentários dos meus artigos do Observador são um serviço público. Os comentadores têm lá umas catarses de ódio (à minha querida pessoa e, acima de tudo, aos meus óculos que tão bem me ficam) e depois vão para casa e, havendo já despejado o ódio, em vez de baterem na mulher ou torturarem o gato, passam o resto do dia calmamente parecendo gente cordata e normal.

É possível que as caixas de comentários e as páginas das redes sociais sejam só um meio de escape de frustrações que são ali despejadas e já não maçam nas outras partes da vida. Em vez de ir dar uns socos no saco de areia, comenta-se no jornal ou no facebook.

Pode ser que esta seja uma parte da verdade, mas não é a verdade toda. A Vox há uns tempos publicou um artigo com as conclusões de um estudo de Patrick Forscher and Nour Kteily sobre o perfil psicológico da alt right americana. Mais assustador que O Exorcista. Entre várias características (aconselho mesmo a leitura) consta a falta de pudor, o orgulho até, com que estes efetivos da extrema direita gostam de perseguir os seus alvos – incluindo nos vários locais da net. Donde: para estes jovens encantadores, o que despejam na net é uma extensão do que são e do que efetivamente pensam.

Curioso, também, (e aterrador) é a tendência para desumanizarem aqueles que são diferentes. Os homens brancos estão no topo – claro – e os negros, numa escala de humanidade de 0 a 100, estão a 64%. As feministas são mais ruins ainda: ficam pelos 55% de humanidade. Somos assim uma espécie de bichos falantes para a alt right. Estamos somente acima, em termos de animalidade, dos muçulmanos e de Hillary Clinton.

Que o racismo é parte crucial do fascismo, todos sabemos. Mas é bom começarmos a perceber – e a expor – que a retórica mais ou menos virulenta anti feminista também é um discurso próprio do fascismo e de fascistas. São estas deliciosas pessoas que, não vendo o outro como um ser humano com dignidade correspondente, se sentem legitimados para todos os excessos de violência (bullying verbal ou mesmo de cacetada) contra as criaturas que apenas têm aparência humana mas são, veem eles, coisas menores.

Pela minha parte, confirmo. Há um grande contingente de pessoas que começa a espumar pela boca mal lê algo escrito por alguém que se assume feminista. O ódio que o meu feminismo suscita em certos fascistas (assumidos ou não) é tal que, há uns meses, devido a discussões políticas de grupos que ninguém conhece, três pessoas foram buscar os meus filhos para me atacarem, escrevendo que eu sou um mal na vida dos miúdos pelo facto de ser feminista. Não conhecem os meus filhos de lado nenhum, Deus livre e guarde os meus petizes de tais companhias, nem a minha maternidade; mas, como eu sou uma coisa e não uma pessoa, até a minha qualidade como mãe é usada para me tentarem enxovalhar e dão os meus filhos como coitados e maltratados por terem uma mãe feminista. Nem vale a pena referir o machismo de só se atacar a qualidade parental quando se quer atacar mulheres, porque neste caso irem buscar crianças e usarem-nas como arma de arremesso é tão miserável e reles que até eu fico aquém nas palavras. Sem surpresas, o grupo de facebook onde a intentona aos meus filhos e à minha qualidade como mãe ocorreu está pejado de gente adoradora de Salazar e do Estado Novo e de quem convive bem com tanta adoração.

Num momento em que os filtros já passaram de moda, o anti-feminismo militante e vocal, tal como o racismo ou a homofobia, tem de começar a ser exposto como fascismo. Porque é. Já é um começo. Isso e realojarem as famílias que vivem no bairro Jamaica, bem como quem vive em guetos semelhantes. Denunciar fascismos tem valor, oh se tem, mas dar condições de habitação minimamente dignas às populações é ainda mais catita. Um melhor uso dos dinheiros dos contribuintes que construir um novo aeroporto.

 

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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