A Meghan da porta ao lado

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Não é só a Meghan, há muitas mulheres a precisarem de apoio psicológico/psiquiátrico e a não acederem a ele por medo de que seja usado contra si. No caso dessas mulheres que conheço pessoalmente e que procuram ajuda às escondidas, ou nem procuram, “a firma” somos nós. São os ex-companheiros abusivos e um sistema judicial que ainda culpa a vítima. 

Elas perguntam-se: E se o tribunal descobre? Posso perder os meus filhos? Procuro ajuda e corro o risco? Ou não procuro ajuda e deixo o problema agravar-se? E se se agravar? Posso perder os meus filhos? 

Têm-me chegado através do projeto Saúde para Todos mulheres em processos de regulação do poder parental com parceiros abusivos. Acrescendo a isso o facto de que muitas estão em situação de fragilidade económica por terem ficado em casa com os filhos, ou simplesmente porque foram as principais cuidadoras. Deixando os pais numa situação de privilégio económico que a justiça nem sempre reconhece. 

Embora já soubesse à partida o resultado, pedi a uma delas que preenchesse o questionário oficial que identifica Stress Pós Traumático. O resultado foi positivo. Pelas descrição dos sintomas muitas outras iriam também corresponder a estes critérios.

A violência doméstica, tanto física como emocional, é uma das causas de Trauma Complexo. Trauma Complexo difere do normal porque ao contrário de um assalto na rua ou um acidente, as agressões são continuadas e perpetradas por alguém conhecido da vítima e com a qual é obrigada a conviver. Caso alguém pense que obrigada é um termo forte, sugiro que leia um pouco sobre os efeitos do abuso narcisista que está por trás da maioria dos casos de violência doméstica. É um processo lento e quase invisível que corrói a auto-estima e a saúde física e mental da vítima. 

Agora imagine que, depois de toda a destruição, acaba por reunir coragem para se afastar do agressor mas sabe que pode ser obrigada a conviver com ela para o resto da vida. E que é ilegal recusar-se a fazê-lo. Que pode perder os seus filhos se se recusar a fazê-lo, mas… se a sua saúde mental tiver sido afetada pelo abuso, ou declinar com a impossibilidade de se afastar dele, então também pode perder as crianças. 

Sabem aqueles filmes em que um grupo de pessoas segura alguém para que outro possa dar-lhe socos? Simbolicamente não é muito diferente. Não podes fugir nem te podes esconder, na verdade muitas vezes nem te podes defender. 

Os sintomas de Trauma são usados pelo agressor contra as vítimas como prova de instabilidade emocional, sem tomar em consideração que a dita instabilidade é causada pelo processo em si. Isto impede que as vítimas procurem ajuda, porque o medo de que o seu diagnóstico – que muitas vezes não toma em conta os gatilhos existentes – pode ser usado contra elas. 

O medo mais prevalecente nestas mulheres é o de perderem os filhos, mesmo quando não há razões evidentes para tal. O facto de saberem que podem ser forçadas legalmente a fazer coisas contra a sua vontade é um gatilho extraordinariamente poderoso que reencena a situação do trauma original. 

Agora imagine que sabe que alguém é capaz de agressão física ou psicológica, sabe que a pessoa é manipuladora e não tem empatia. Como se sentiria ao deixar uma criança a seu cargo? Como se sentiria se essa criança tivesse medo e ainda assim fosse ameaçada de alienação parental se não a deixassem ir? Nestas situações o perigo não passou, a percepção de risco é adequada, a tensão a que a pessoa fica sujeita é insustentável. 

Assim, parceiros abusadores aplicam frequentemente técnicas de “Tortura da água”, em que activam as defesas traumáticas do outro parceiro, para depois o acusarem de instabilidade emocional, utilizando isso contra ele em tribunal. 

Infelizmente é demasiado frequente que o sistema judicial seja ele próprio abusivo e negligente.  É essencial que quem se debruce sobre estes casos tenha formação sobre trauma para evitar fazer parte dos ciclos de violência e em vez disso crie ciclos de reparação e empatia. 

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