Conheci Helena Marques em junho de 1995. É o que me diz a primeira página de O Último Cais, o seu primeiro romance, publicado em 1992. Assino sempre os livros quando os compro, e anoto o mês e o ano da compra. É um ritual que me dá prazer. Compro os livros e, em casa, assino-os e dato a compra. Sou muito possessiva com os meus objetos de eleição, e os livros estão nos lugares cimeiros. Merecem ritualização.
Portanto sei quando comprei este primeiro romance de Helena Marques. Te-lo-ei lido pouco depois. Maravilhou-me tanto que no ano seguinte, em junho de 1996, comprei A Deusa Sentada (publicado em 1994). Lembro-me que o lia numa viagem a Atenas em agosto desse ano – porque me recordo de recomendar os livros de Helena Marques à minha companheira daquela semana de férias: a minha cunhada, mulher do meu irmão mais velho.
Terceiras Pessoas, publicado em 1998, inexplicavelmente não tem nem a minha assinatura nem a data. Mas o meu exemplar é a primeira edição do livro, pelo que terá sido comprado em 98 ou 99. E Os Íbis Vermelhos da Guiana, publicado em 2002, só veio para mim em abril de 2008.
Desse lado perguntam: por que carga de água queremos saber das compras e das leituras de MJM? Porque – respondo – é isto que se passa com os bons autores, como Helena Marques: criamos uma relação com estas personas, as suas obras dialogam com a nossa vida, os livros entrelaçam-se na nossa própria história.
Helena Marques, nascida em 1935 em Carcavelos, numa família do Funchal, cidade onde cresceu, romancista de mão cheia, morreu esta semana. E toda uma geração de adolescentes e de twenty-something nunca ouviram falar dela. Não sei se se deve a uma certa normalidade da passagem do tempo – o último romance tem quase vinte anos -, se à invisibilidade que oh tão facilmente cai em cima das mulheres e das obras das mulheres, se à pequenez do mercado editorial pelo escasso número dos leitores em Portugal (que para apresentar novidades tem de engavetar o que já se fez).
O certo é que é injusto. Helena Marques é das escritoras portuguesas mais originais dos fins do século XX. E quando digo escritoras é porque é mulher e não me apetece usar o masculino neutro, porque a minha avaliação engloba os dois sexos.
Talvez por ter crescido em ambiente insular, numa comunidade pequena e, então, sem viagens de avião para Lisboa, Helena Marques é uma escritora de personalidades, do interior dos humanos. E das relações pessoais – pontificando as de amor e paixão e as relações familiares. A autora leva-nos sempre pelo interior das personagens, o que as comove, o que as move, como funcionam as suas personalidades. Bem como pelo mais importante: os afetos que as ligam. Esta interioridade e esta preferência pelo relacional e familiar, um para um, não torna os seus livros pouco ambiciosos ou domésticos, digamos assim – ainda que os grandes sobressaltos da humanidade ocorram com a mesma magnitude nos contextos mais exíguos. Helena Marques conta-nos também sagas familiares – notoriamente, O Último Cais – e (em todos os livros exceto Terceiras Pessoas, que se centra numa quinta no meio de Portugal) são ainda histórias de diáspora das famílias nos últimos dois séculos. A Deusa Sentada gira à volta de duas mulheres que viajam para Malta em busca das raízes da família e Os Íbis Vermelhos da Guiana tem como pano de fundo o encontro do afastado ramo da família que em tempos se instalou na Guiana.
Trata-se de uma autora madura (afinal publicou o primeiro romance quase com sessenta anos), de personagens maduras (ou a amadurecer) – mas não afasta os jovens, que era esta vossa amiga quando li os livros. Helena retrata o seu mundo: da burguesia privilegiada dos séculos XIX e XX. A leitura é embalada – e, penso que inevitavelmente (é uma autora de personagens, já disse, não de investigações policiais ou de sobressaltos políticos), carinhosa.
Não sei onde andam agora os vários romances de Helena Marques. Os que tenho foram editados todos pela Dom Quixote. Não sei se estão esgotados, se se encontram nas feiras do livro. Em todo o caso, façam o favor a vós próprios e encontrem maneira de ler, pelo menos, O Último Cais. Foi Prémio da Revista Ler/Círculo de Leitores, Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores e Prémio Máxima – Revelação. Tudo merecido. E eu, se tivesse de escolher o livro português da década de 1990 para oferecer a alguém, provavelmente elegia-o.