Vamos lá continuar a senda de refletir como as mulheres têm sido apagadas da existência no espaço e no imaginário públicos quando o que fazem sai fora da reserva doméstica para onde séculos e milénios nos relegaram. No quotidiano do trabalho (onde os nossos inputs só valem depois de validados por um homem), no espaço mediático criado pelos jornalistas, no mundo académico dos cientistas e investigadores – já vos escrevi no outro dia.
Avancemos para as artes. Sabemos bem: a produção artística é o reino da subjetividade. Como demonstrou a personagem de Robin Williams no filme O Clube dos Poetas Mortos, um poema não pode ser avaliado através de um gráfico. Os métodos quantitativos são infrutíferos. O mesmo para uma peça de teatro, um quadro, um livro, um filme, uma instalação ou uma escultura.
Não espanta, portanto, que seja a área de mais fácil quase absoluto esquecimento das mulheres, afinal a avaliação de uma obra artística depende inteiramente do gosto e discernimento de quem bota faladura sobre o assunto – que, regra geral, são homens. A razão? Simples: os homens gostam mais de obras produzidas por outros homens (pelo menos, desde que saibam que são produzidas por outros homens). Da mesma forma que nas organizações preferem as ideias que provenham de outros homens (mesmo se são originadas inicialmente por mulheres, como já se chegou à conclusão). Não levo a mal: estou muito longe de só gostar de arte made by women, mas é certo que tendencialmente sou mais interpelada pelos livros escritos e quadros pintados por mulheres, porventura por uma comunhão de referências e temas que mais nos massajam o sistema estético.
O problema surge quando o poder económico de escolha está sobretudo nos homens, bem como os mediadores que avaliam a qualidade de cada trabalho (editores, galeristas, historiadores de arte, críticos, professores) serem mormente também homens com enviesamento que leva a desconsiderar as obras produzidas por pessoas com cromossomas xx. Em resultado, as mulheres estão sub representadas nas exposições, nas compras para coleções privadas ou museus – e, não dispiciendo, nos preços das obras de arte.
Mais uma vez, é como se as mulheres não existissem na produção artística, ou fossem consitentemente autoras de menor qualidade. A este propósito lembro-me de um post num blogue conhecido de um senhor que agora faz parte daquele movimento 5.7 que garantia que as mulheres não eram capazes de grandeza inclusive nas artes, assim mesmo, ponto final, parágrafo, palavra do senhor. (E que as mulheres só conseguem ser grandes agora – antes nunca foram – porque estamos em tempos em que já não há grandeza no mundo. Sim, há movimentos que ainda vão buscar misóginos deste calibre ‘para pensar a direita’. Mas isso é conversa para outro dia.) A estratégia do costume dos misóginos: fazem por ignorar o que produzimos e, depois, afirmam que não produzimos nada digno de nota das magníficas pessoas masculinas.
Os exemplos são intermináveis. Deixo alguns.
As mulheres do movimento Bauhaus que, apesar da pretendida modernidade e do suposto igualitarismo do movimento, e da qualidade das suas obras, foram ignoradas na feitura da história do Bauhaus e cederam o protagonismo aos artistas masculinos.
As mulheres que estiveram na criação e produção do expressionismo abstrato americano, Lee Krasner, Elaine de Kooning, Grace Hartigan, Joan Mitchell, e Helen Frankenthaler. Apesar da qualidade e disrupção das suas obras, são artistas como Pollock, De Kooning (o Willem), Sam Francis e outros homens que tiveram direito às luzes da ribalta (e aos clientes). Estive há um ano na maravilhosa exposição da Royal Academy of Arts com os expressionistas abstratos americanos, e a única mulher que me recordo de ver exposta foi Lee Krasner, mulher de Pollock (e claro que a apresentavam como mulher de Pollock).
A pesquisa recente tem revelado como as freiras, tal como os monges, participavam na elaboração de manuscritos medievais, incluindo as iluminuras. De referir que muitos dos manuscritos eram livros religiosos, e atribuir a uma mulher a reprodução dos livros religiosos (algo perto de sagrado) era uma magnífica distinção. Porém este pedaço de informação tinha sido apagado.
Já ouviu falar de Mary Cassatt? Era uma impressionista de mão cheia. Isso, impressionismo, esse movimento recordista de valores em leilões. Mas, não por acaso, Mary Cassatt, apesar de ter exposto com os impressionistas, foi de seguida esquecida em França – e só ressuscitada numa recente exposição em Paris. Berthe Morrisot, outra impressionista, não foi absolutamente esquecida mas anda lá perto.
E Louise Vigée-Le Brun, toca algum sino? É só uma retratista genial setecentista, com as figuras mais modernas, fluídas e interessantes que eu conheço antes da arte contemporânea, só com Ingrés (e mesmo assim) e John Singer Sargeant no mesmo patamar. Esta vossa amiga, que sempre foi consumidora de livros de arte e de história de arte, logo em versão de irritante adolescente, não se recorda de ter tropeçado em Louise Vigée-Le Brun até estar bem na idade adulta (e aí, tenho ideia, tropecei durante a leitura de um romance histórico, não em nenhum dos tais livros de arte).
O buraco negro (de prestígio e reconhecimento de qualidade da obra) para onde nos atiraram é de tal ordem que é comummente aceite que um bom investimento em arte é arte produzida por mulheres – porque ainda não alcançou o preço que a qualidade e a artista merecem; donde, há grande potencial de valorização. Um ótimo investimento de longo prazo.
Sucede, meus caros, que as mulheres, tal como os homens, têm vidas para sustentar no imediato, não apenas daqui a umas décadas. No ano passado, numa visita de trabalho à Unit London, galeria com métodos comerciais muito agressivos (para o mercado da arte, e que, francamente, só podem ser acolhidos e valorizados por quem não sabe o que está a fazer) reparei que nos artistas (é como quem diz) representados só tinham duas mulheres. Perguntei por que razão. Um dos donos ficou estupefacto: no mundo depois da marcha das mulheres em Washington nunca lhe tinha ocorrido que haveria estranheza em tal discrepância.
Nem toda a gente compra arte, mas muita gente visita exposições e museus. Pelo que nos cabe usar – outra vez – o poder de consumidor@s para exigir que artistas femininas sejam mostradas, exibidas e relevadas. A Tate, em Inglaterra, está a apostar em compras paritárias de obras de arte. Mais se seguirão, se protestarmos. Desde logo porque mais mulheres nas luzes tem efeito de contágio para todas: combate a ideia de que o espaço público e mediático é o domínio dos homens, e as grandes concretizações têm sempre assinatura masculina.
(Esta série irá continuar, com o apagamento das mulheres noutras bandas profissionais e mediáticas.)