– Fica marcada para dia 29 de Abril. Esteja cá às 9:30 da manhã. Uma quarta-feira, estou de serviço. No dia seguinte vou para o estrangeiro. A cria já está apta a aguentar-se fora. Não há necessidade de entrar em trabalho de parto e ir parar a umas mãos quaisquer.
Só agora, passados 29 anos, alcancei o verdadeiro significado desta decisão da minha obstetra, Teresa Sousa Fernandes: proteger-me daquilo que hoje se classifica como “violência obstétrica”.
Às 24 semanas fui internada com ameaça de parto prematuro. Não fosse ter tido vontade de fazer xixi e ter visto umas gotitas de sangue nas cuecas nem me passaria pela cabeça ir às urgências da maternidade, pois até esse momento os movimentos mais intensos que estava a sentir na barriga não passavam, para mim, de uma agitação da cria.
Chegados lá, deu-se a coincidência de o médico de serviço ser colega de curso do meu atual ex-marido, pelo que a consulta, a que se seguiu internamento, decorreu de um modo mais informal. Foi aqui que ouvi esta frase:
– Fiz um parto pélvico para ver como era pois tinha imensa curiosidade.
Não lembro quase nada dessa semana. Porém três coisas recordo com clareza:
– numa das visitas de cortesia à enfermaria por parte da Dr.ª Teresa contei-lhe da minha indignação do parto pélvico feito pelo médico x, apenas porque sim. A minha preocupação foi no sentido deste ter uma atitude irresponsável pois não se tinha preocupado por ter colocado o bebé em perigo. O meu trabalho era com crianças portadoras de deficiências mentais e paralisias cerebrais, pelo que sabia das estatísticas relativas a esta questão. A perceção de violência exercida sobre uma mulher era um cenário que não existia para mim.
– o nome do médico por aquela atitude insensata: Br.
– o médico que me acompanhou nesse internamento, Antonino Silvestre, ter-me dado os parabéns pela minha calma quando lhe disse:
– Só quero que a cria se aguente até às 28 semanas para ser viável. O resto logo se verá.
Uma vez que a natureza decidiu que eu nascesse com um hemi-útero tal implicava, necessariamente, que a cria não dispusesse de grande espaço para crescer. Portanto, quando uma semana depois regressei a casa, tinha ordens de repouso absoluto. Cumpri.
Na consulta de rotina das 36 semanas, ficou decidido fazer o parto às 38 por razões “logísticas”, a cria estava em posição pélvica e, havendo manifesta falta de espaço, a probabilidade de dar a volta era diminuta.
No dia e hora marcados comparecemos. Não me lembro de nada em especial (não sei se por efeito de alguma medicação) e nem da entrada para o bloco operatório me recordo. Contudo, com precisão cirúrgica, tenho bem presente, a certa altura, de ver uma luz a aumentar gradualmente de intensidade, ouvir vozes e alguém atrás da minha cabeça me perguntar se estava bem.
– Sim estou. Parece que me arrancaram um dente.
– Fizemos-lhe muita coisa menos arrancar um dente.
Na manhã do dia seguinte já na cama com a minha bebé – só no parto fiquei a saber que tinha parido uma menina -, cheia de dores e a mal me conseguir mexer, aparece-me a Drª Teresa com o seu habitual encantador sorriso.
– Bom dia, Mari Jose (para ler com pronuncia espanhola pois foi sempre assim que me tratou desde que nos conhecemos) estou aqui para contar o que lhe aconteceu. Pedi para ninguém o fazer. Fiz questão de ser eu.
Descreveu-me, com todo o pormenor, os procedimentos a que foram obrigados, devido ao choque anafilático com edema da glote. Contou-me que pela primeira vez na vida deu graças por ter tido cirurgia geral e que mentalmente chegou a visualizar onde me haveria de cortar a traqueia para eu respirar mas felizmente tal não foi necessário. Cada segundo contava. Falou-me da equipa, suspensa, à espera da sua decisão:
– Primeiro a mãe. Poderá ter mais filhos. Um bebé sem mãe não é nada.
Ainda hoje não encontro explicação para ter escrito os temas que escrevi, aqui na Capital Mag. Saíram, ponto! A única que me parece plausível, para quem acreditar – eu acredito – é que existe um apelo da minha ancestralidade…
Essas mulheres amparadoras de outras mulheres e aparadoras de crias.
Mulheres que, partindo de Cáceres, entraram no Nordeste alentejano e, em resultado de todos esses úteros, aqui estou hoje. Como se tivesse sido chamada a ser a sua continuadora no muito que sabem estar por fazer…
Resgatar a mulher na sua função exclusiva, como ninho da vida.
Na minha primeira experiência de parir estive entre a vida e a morte. Uma mulher decidiu pela vida de outra. É uma questão sem resposta, sei. Porém coloquei-a…
Como seria se em vez de uma mulher fosse um homem a decidir?
Na cidade, onde pari duas crias, há um debate antigo sobre a necessidade de uma nova maternidade. Foi com uma enorme alegria que tomei conhecimento no dia 24 de Março de 2021 do movimento “Nascer em Coimbra” o qual apoio sem reservas. Teresa Sousa Fernandes é uma humanista dos sete costados, como por cá todos reconhecem. Por isso, daqui, da minha singela experiência pessoal, que sei não ser única, proponho que a nova maternidade venha a receber o seu nome.
