Cumprem-se, hoje, 45 anos sobre o término do processo judicial movido contra as “Três Marias”, as três autoras de Novas Cartas Portuguesas: Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. A obra escrita a seis mãos, num exercício pleno de palavra partilhada (a autoria individual de cada texto nunca seria desvelada), foi publicada em abril de 1972, no contexto da ditadura marcelista, e apreendida pela censura do regime. De imediato, é instaurado um processo judicial contra as três autoras, alegando “conteúdo insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública”. Seguem-se os interrogatórios da PIDE/DGS às três autoras, e o julgamento iniciado a 25 de outubro de 1973 só não teria lugar devido à Revolução de Abril de 1974. Dias depois, a 7 de maio, foi lida a sentença de absolvição.
No exterior do País, uma onda de solidariedade feminista gerou protestos contra a censura em vários pontos do globo.

O processo movido contra as três autoras das Novas Cartas Portuguesas marca o princípio da intervenção pública de Maria Teresa Horta (Tavares, 2011, p.367). É, por isso, uma ocasião duplamente oportuna para revisitar a obra e o legado de Maria Teresa Horta, no Congresso Internacional “Maria Teresa Horta e a Literatura Contemporânea: De Espelho Inicial (1960) a Estranhezas (2018)”. O Congresso, que terá lugar nos próximos dias 8, 9 e 10 de maio, no Palácio Fronteira e na Reitoria da Universidade de Lisboa, reúne investigadoras/es de diversos países e encerra múltiplas iniciativas. Nesta viagem pelas quase seis décadas de produção literária de Maria Teresa Horta, nome proposto pela Sociedade Portuguesa de Autores para a candidatura portuguesa ao Nobel da Literatura 2019, revisita-se a obra poética e ficcional da autora, abrindo pontes de diálogo e intersecções (como o diálogo entre Ema, de Maria Teresa Horta, e História de uma Serva, de Margaret Atwood, tema da primeira conferência plenária).
A biografia de Maria Teresa Horta é, contudo, irredutível à vastidão da sua obra literária: biografia-constelação, o percurso de Maria Teresa Horta é um marco indelével da luta feminista em Portugal. Foi também jornalista de profissão durante cerca de quatro décadas, contexto em que, durante onze anos (1978-1989), foi chefe de redação da revista Mulheres, publicação ímpar na história da imprensa em Portugal. Formato marcado pela abordagem feminista, surpreende ainda hoje pela profunda atualidade dos temas: o apagamento das mulheres na História, a luta pelos direitos sexuais e reprodutivos, a crítica e questionamento dos papéis e estereótipos de género, a denúncia da violência na intimidade vivida por tantas mulheres. Num tempo onde a luta feminista era tão mais silenciada e solitária, as páginas da revista Mulheres são testemunho de tantas lutas que seriam ganhas mais tarde, e de tantas que continuam por cumprir.
O programa do Congresso inclui o lançamento de nove obras, entre as quais a reunião de crónicas Quotidiano Instável, que Maria Teresa Horta publicou entre 1968 e 1972 no jornal A Capital e que ficam, finalmente, acessíveis a todas/os. Durante o Congresso, a 9 de maio, pelas 16:30, será inaugurada a exposição Maria Teresa Horta e a sua obra na Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, exposição que reúne as muitas obras da autora e sucessivas reedições, apresentando também um espólio documental que contempla fotografias, discos, revistas – como exemplares da revista Mulheres e da revista Flama, acima apresentada, publicada dias depois da Revolução de Abril –, documentários de televisão, entrevistas e documentos da censura.
Eu, que tive o prazer e o privilégio de poder estudar o percurso profissional e a produção jornalística de Maria Teresa Horta, só posso agradecer-lhe o tanto que aprendi com ela, pelas palavras dela, sobre outras mulheres, as suas histórias e as suas lutas. E como é apaziguador saber, em tempos conturbados como os de hoje, que resistiremos. Continuamos, afinal, o caminho de mulheres gigantes. Um movimento de fundações tão fortes certamente resistirá – resistiu já tanto, afinal. Celebremos a enorme sorte de termos ainda algumas das gigantes connosco. Mulheres como ela, a gigante Mulher-Poesia, Mulher-resistência, Mulher-Liberdade, a sempre insubmissa senhora de si. A mesma que escreveu Minha Senhora de Mim em pleno Estado Novo; que enfrentou a ditadura com a palavra-arma, e que continua irredutível nas suas QUESTÕES DE PRINCÍPIO:
Não me exijam
que diga
o que não digo
não queiram
que escreva
o meu avesso
não ordenem
que eu aceite
o que recuso
não esperem
que me cale
e obedeça
Maria Teresa Horta
(Estranhezas, 2018)
Obrigada, Teresa.