A coragem de Sofia Arruda em Portugal, o país onde não há assediadores

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No programa Alta Definição, a atriz Sofia Arruda falou de uma situação de assédio sexual que, por ter sido repelida, levou a que estivesse dois anos sem trabalhar em televisão e seis ou sete anos sem trabalhar numa certa produtora de tv. Não nomeou o assediador – provavelmente continua com poder no meio onde Sofia Arruda trabalha.

Há três anos, Catarina Furtado contou que também tinha sido alvo de assédio em contexto de trabalho. Barbara Guevara no twitter informou ter sido também assediada enquanto jornalista na SIC. Dânia Neto também falou de uma experiência que a levou a afastar-se de uma empresa.

O que espanta não são os assédios contados por estas personagens mediáticas, mas sim que em Portugal não se contem mais casos semelhantes. E que não haja ainda respaldo às vítimas de assédio que lhes dê segurança para contar quem e onde.

Mas não há, é um facto. Portugal é um país pequeno. Toda a gente se conhece. Os círculos de poder (político, mediático, cultural) são reduzidíssimos. Caso um MeToo ocorresse, seria certo que envolveria alguém que se conhece e com quem até se partilham outras afinidades – que por cá são muito mais importantes que qualquer solidariedade feminista ou (inexistente) sororidade: afinidades partidárias, guerras de egos, incompatibilidades e ódios pessoais, tribalismo social e político, amizades e teias de favores pessoais. Tudo isto se sobrepõe à solidariedade com uma mulher vítima de assédio (ou de violência doméstica ou sexual).

Recordemos essa tristeza que foram algumas reações (ou falta delas) às alegações muito credíveis que Mayorga fez sobre Cristiano Ronaldo. Envolviam uma violação. Mas pretendeu-se que era meramente um caso de justiça, que a investigação e os tribunais funcionariam e dispensariam justiça – porque todos sabemos como os violadores terminam invariavelmente acusados, condenados e cumprindo pena, certo? É mesmo esta a realidade do mundo. Nem foi a inoperância (deliberada) de autoridades judiciais investigando e condenando crimes contra a autodeterminação sexual das mulheres que gerou o MeToo, movimento espontâneo onde as mulheres denunciavam para a opinião pública casos que foram ignorados ou hostilizados pelas autoridades existentes (empresas ou instâncias judiciais). Claro que as mulheres podem mesmo ter muita fé de que a Justiça as protegerá em caso de violação (acenem todas com um ar muito convencido).

Todos os autores que estudam o tema concordam: há uma conspiração de silêncio nas sociedades para calar as vítimas e as impelir a prescindir de dar a conhecer a sua história. Há uma escolha implícita pelos agressores – normalmente mais poderosos e socialmente fortes.

A denúncia de Sofia Arruda seguiu o caminho do costume. Para desvalorizarem – e a calarem e dissuadirem outras mulheres de futuramente contarem abusos – de imediato se procurou apontar os eventuais defeitos da denúncia: que não disse onde foi, nem quando, nem nomeou o assediador. Ah, e porque só conta agora?

Não é o assediador que leva com a censura social, é a vítima, porque não conta as coisas a contento da populaça. (Nunca contaria. Se nomeasse nomes, de imediato um coro de gente se levantaria para por em causa que cavalheiro tão idóneo praticasse tais atos, que não havia provas, que é a palavra de um contra a de outro – e a palavra dos homens vale mais, que as mulheres são mentirosas como tantos gritam continuamente -, as amigas e os amigos defende-lo-iam acerrimamente, que provavelmente era uma vingança da atriz por não ter obtido as vantagens prometidas depois de aceder às exigências do assédio, etc. etc. etc. Este tipo de denúncias nunca é suficientemente credível para o mundo sexista. Porque não pode ser, ponto final.) Os comentários das redes sociais estão inundados disto.

Nun país onde os violadores têm, e muito poucos, sentenças de pena suspensa. Onde nada se prova – podemos ver o caso Sócrates atualmente; se alguém não se filma a combinar crimes então não há prova para condenar. Como é que se pode exigir a uma mulher que diga o nome de alguém poderoso, de uma conduta que em Portugal nunca seria provada em tribunal e que levaria a retaliações profissionais e judiciais contra essa mulher? Ah, claro, as mulheres se não aceitarem ficar desfeitas em picadinho não merecem ser acreditadas, não é? Passa-se o mesmo com as violações e a violência doméstica: enquanto a mulher não é morta então o crime é uma invenção duma harpia ressabiada que quer dar cabo da vida a um bom homem com acusações espúrias.

Portugal é um país especialmente propenso ao silêncio. Não só pelos meios pequenos onde todos nos movimentamos. Também pela cultura. Somos um país ferozmente conservador. Execramos as mudanças e tudo o que sacuda os hábitos instituídos. As reações a qualquer coisa de novo são o desconforto, a desconfiança e o ataque – pelo menos verbal e nas redes sociais, que também somos um país cobarde que fora dos teclados dos gadgets eletrónicos não tem coragem para se expressar criticamente perante ninguém. Somos um país paroquial e saloio, onde se olha para pessoas que estão na televisão como vivendo noutro mundo e merecendo pagar por não partilharem a pobreza maioritária – se as mulheres são maltratadas, quem quer saber? Mesmo assim têm muito boa vida, não é?

A cultura de solidariedade não existe. As desgraças de quem vive melhor até divertem os que estão abaixo na pirâmide. Se as mulheres têm sucesso financeiro ou algum tipo de poder são vistas como tendo acedido a algo a que não têm direito – pelo que é justo pagarem por esse privilégio com algumas indignidades. Para o mundo lhes mostrar que podem ser muito bem sucedidas que ainda assim são postas no seu lugar. As mulheres não são como os homens, não têm direito a tudo: felicidade, dinheiro, profissão bem sucedida, segurança, vida livre de violência, liberdade. Isso é só para os homens. As mulheres, se têm umas vantagens, têm de pagar prescindindo de outras. A inveja é uma característica nacional, e mais ainda dirigida a mulheres.

Posto isto tudo, a minha solidariedade a Sofia Arruda, a Catarina Furtado, a Barbara Guevara e a todas as que passaram a mesma situação.

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