Violência obstétrica – um ensaio.

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As mulheres enquanto mercadoria e o roubo do amor maternal como forma de nos escravizar – 4/4

À roda do parto – silêncios e memórias

Numa das várias “intimações” que recebi para comparecer a acompanhar amigas em parto, fosse por gravidez monoparental, família longe, ausência, involuntária, do companheiro ou simplesmente porque eles diziam “desmaio quando vejo sangue ou agulhas, vai tu com a F”, cruzei-me com uma velha amiga de liceu.

Patrícia (nome fictício) foi para enfermagem cumprir o seu sonho de criança. Sempre adorou dar colo, cuidar dos outros. Sempre com um afago, uma mezinha pronta quando alguém tinha tosse, febre ou tocado no que não devia. Estava no sítio certo para aquilo que conhecia dela.(1) Foi uma enorme alegria revê-la após vários anos.

Depois dos sorrisos e abraços pelo reencontro despediu-se, pediu desculpa por nos deixar pois o trabalho chamava-a, tendo tido a gentileza de desejar à minha amiga “uma hora pequena”. Compreendemos. Nós permanecemos no corredor onde a Fernanda (nome fictício), dando três passos entre cada contração, retorcia-se agarrada a mim. No fim de, talvez, umas 18 horas neste vai-e-vem pelo corredor, ouvimos alguém a gritar a uma parturiente para se calar. Incomodada apurei o ouvido. A voz era-me familiar. Sem margem para dúvidas ouviu-se “Cala-te! Quando o fizeste devias ter pensado que o irias parir”. Fernanda e eu entreolhamo-nos. Pegou-me a mão ainda com mais força. Senti-lha com um tremor feroz. Quem estava do outro lado desatou num choro gemido incontrolável. Há uma enfermeira que sai, em passo apressado, em sentido oposto ao que nos encontrávamos. Não queria acreditar no que acabava de assistir: tinha sido a minha amiga Patrícia a autora de tal barbaridade. A Fernanda agarrou-se ao corrimão da parede e eu, clandestinamente, dei um salto até àquela cama para tentar apaziguar o gemido de abandono. Era uma mulher bonita, de tez morena e longos cabelos loiros, sozinha naquele quarto, de pernas abertas, ensanguentadas, à espera que a dilatação se fizesse, entrassem não sei quantos dedos e o saco fosse artificialmente rompido. A enfermeira tinha ido chamar o médico. Disse-lhe qualquer coisa do tipo “vai passar, temos que ser fortes, todas passámos por isto, logo esquecemos, já aconteceu às nossas mães e avós.” Mordendo a ponta do lençol abanava a cabeça a dizer que sim. O único som que lhe saía era um gemido que parecia vir do fundo do seu corpo esgaçado.

Voltei para junto da minha amiga que continuava a contorcer-se sobre si própria agarrando na barriga, dobrando os joelhos que, quase a estatelar-se, com a intensidade das dores ia-se apoiando em mim. Agora era ela que estava em ponto de desatar num choro compulsivo. Percebi que para não o fazer debitou, em surdina, um chorrilho de palavrões que até ali desconhecia na sua boca. Imitei-a em jeito de aprovação e empatia. Sorrimos.

Do corredor vimos aquela mulher, de cabelos loiros e tez morena, a ser-lhe arrancado o lençol e rapidamente transferida para uma marquesa em que, em passo acelerado, foi levada para dentro de um elevador. Percebemos que o bebé deveria ter entrado em sofrimento e uma cesariana impunha-se.

A minha amiga continuava a vazar, como se fosse uma ladainha, a sua lista de palavrões.

Num arrojado parto, Fernanda, nessa noite pariu. Mandou para o caralho uma enfermeira que a repreendeu por não fazer força e, se não lhe tivessem amarrado os braços, teria cumprido a ameaça de dar uns murros a quem estava a espetar-lhe os cotovelos na barriga. No dia seguinte disse-me que a tinham enganado sobre o parto e que não iria ter mais nenhum filho. Cumpriu a promessa.

Não conseguia imaginar a Patrícia a tratar com aqueles modos alguém e muito menos uma mulher em trabalho de parto. Assim que pude procurei-a. Conhecendo-me, não estranhou a minha visita. Senti que se tinha preparado para a minha pergunta, sobre o seu comportamento, para com uma parturiente:

– O que é que tu queres?! Uma pessoa está aqui enfiada 8, 12 às vezes 24h a ouvir gritos de duas, três ou mais, frequentemente, na mesma divisão. Temos que fazer o que tem que ser feito que é elas e eles não morrerem e o resto é conversa (2);. Temos que fazer o nosso trabalho e não estar com lamechices. Não querem sofrer não os façam. Eu também já ali estive – retorquiu agressivamente.

Num rodopio, brusco, virou-me as costas tendo arrancado, em passo acelerado, não me permitindo dizer o que quer que fosse. Nunca mais a vi. Não sei se por impotência, pragmatismo ou evitamento da dor não voltei a lembrar o assunto.

Desde que me propus a escrever sobre estes temas os meus dias têm sido de insónias porque à minha frente passam, para além dos meus partos, toda uma vivência dos anos 80 que estava, constatei agora, adormecida.

Não me contaram nem vi em nenhum filme. Ouvi e vi mulheres que com uma expressão dura, olhar frio, riso trocista, sádico – poderei dizê-lo sem pudor -, julgavam, amedrontavam, ridicularizavam, berravam para outras mulheres, com “as carnes abertas”, esta frase (com uma ou outra variação), “grita, grita na hora de o fazeres não gritaste assim”. Vi corpos de mulheres a serem olhados e manuseados, por mãos masculinas e femininas, como se uma bola de farinha estivesse a ser sovada. Vi corpos em cima de um corpo a esmagá-lo, como se as suas mãos empurrassem um esmagador de batatas sobre algumas mal cozidas.(3) Lembrei-me de uma mulher a quem bateram, no rosto, por não fazer força suficiente para expulsar o seu filho morto. Adaptando Primo Levi em “Se isto é um homem”. Pergunto “Se isto é uma mulher? Não configuram estes procedimentos as características de tortura?

No dia 31 de Janeiro de 2021 publica-se a minha reflexão sobre as sequelas do parto poderem ser equiparadas a um trauma de guerra, para o bebé, com a consequente génese da pulsão para a misoginia e machismo estrutural.(4)e, no dia seguinte, a Isabel Castro e Silva descreve, no grupo do facebook #feministashistéricas,(5) um postal sobre o seu parto. Diz-nos que que só agora, dois meses depois, consegue falar sobre esse momento. Nos comentários, outras mulheres fazem relatos idênticos e em quase todos, predomina a violência a que foram sujeitas. Desligada, há pelo menos 24 anos, destas andanças a minha estupefação foi total. Fui invadida por uma sensação de infortúnio.

Voltemos aos anos 80. Quando assistia e vivia aquelas situações dizia sempre para com os meus botões que “se elas aguentam eu também serei capaz.” Uma das minhas amigas pariu num dia de lua cheia: havia mulheres sozinhas, deambulando, pelo corredor. Outras deitadas em macas alinhadas junto de uma das paredes. Com a distância dos anos e outra sensibilidade a imagem que me ocorre é a de um hospício. Àquelas mulheres, sós, de olhos assustados dei a mão, humedeci lábios com gazes, com a ponta do lençol enxuguei o suor que escorria pelo pescoço. A indiferença das profissionais para com elas era assustadora. Embora sentindo que havia muita desumanização em torno de toda a envolvência deste momento nunca tinha percecionado, até hoje, esta atitude como sendo um exercício de uma infame crueldade sobre o nosso corpo. Não tinha consciência que o parto médico era um “abuso” sobre nós. Fiquei perturbada ao constatar que ao longo destes anos vivi num torpor sobre esta minha experiência. Após ler os testemunhos no grupo efetuei algumas pesquisas tendo verificado que, afinal, nada tinha mudado.(6)(7)(8)

Confesso que fiquei em choque. Fechei os olhos e umas teimosas lágrimas silenciosas soltaram-se. Na minha frente começou a passar o vídeo da violação em grupo a Cheryl Ann Araujo.(9) Provavelmente muitos e muitas estarão a pensar que exagero. Não creio. Vejo que, nós mulheres, estamos condicionadas para aceitar este fardo, esta inevitabilidade, esta culpa. Assumirmos o nosso medo e terror é sermos, como referido nas conclusões de um ensaio na área de enfermagem do ano de 2015, “…vistas pela equipe como descontroladas e descompensadas (…) exige da mulher um maior senso de controlo sobre o seu corpo e as suas emoções, fatores que nem sempre estão presentes (…) muitos sentimentos se exacerbam durante o trabalho de parto…”(10). Quando li o excerto só me interrogava: “como é possível, nesta data, permanecer esta visão da mulher, no ato de parir, por parte de outras mulheres?” Das leituras que fiz, da minha experiência e de tantos testemunhos recolhidos posso, de facto, afirmar como nos sentimos quando damos entrada numa maternidade hospitalar: naquele momento, deixamos de ser uma mulher para sermos apenas um corpo manipulado por mãos que nos são estranhas. Percebo agora o olhar de terror que vi em algumas delas. Mais do que a dor física, era o uso que lhe estavam a dar, um corpo desprezível, um corpo sem direitos. Passamos de um estado de graça durante nove luas, para o de coisa com a consequente perda de dignidade que, no entanto, é devida a todo o ser humano.

Com o “nobre”(11) objetivo de redução da mortalidade associada ao parto, numa lógica capitalista em vez de melhorarem, significativamente, as condições sociais e sanitárias das famílias implementaram o medo de que tal acontecia porque o corpo da mulher parideira era imperfeito. Assim, para que a sangria das mortes estancasse era forçoso que tod@s entregássemos esse produto defeituoso ao meio hospitalar.

A história mostramos que a medicina moderna estava, nos seus primórdios, exclusivamente, na mão de homens(12). Este facto implicou que o parto deixou de ser visto como uma função fisiológica do corpo e passou a ser-lhe atribuída, por todos os profissionais envolvidos, a categoria de patologia. Portanto, na função de parir, institucionalizada como um ato médico a mulher viu-se despojada da autonomia sobre o seu corpo.

Haverá ato mais violento de subjugação de um ser humano, independentemente do sexo a que pertence, do que aquele em que deixamos de ter poder sobre o nosso corpo? Qual o outro momento na nossa vida em que ele se pode equiparar? Para além da inevitabilidade da morte, a que ninguém escapa, só encontro como resposta a tortura(13) e a violação com a agravante de ser uma violação em manada.

https://areademulher.r7.com/maternidade/violencia-no-parto-estudante-de-medicina-faz-desabafo-e-emociona-web/

Levei tempo para me recompor desta associação assim como da interrogação que ela comporta:

– por que é que ao momento mais belo do mundo, o surgimento de uma nova vida, que comporta uma dor natural, há mulheres e homens que fazem questão, ainda, em 2020 (veja-se o testemunho da Isabel Castro e Silva) em fazer desse momento um abuso sobre o nosso corpo?

– será porque na memória destes profissionais permanece, bem inscrita, a pulsão de que nós, mulheres, temos que expiar os males do mundo no que à sua criação diz respeito?

Se, por um lado é neste arquétipo de expiação da culpa que encontro explicação para o silêncio e aceitação deste abuso sobre o nosso corpo, por outro é também num ajuste de contas, por parte dos profissionais deste segmento da saúde, com a mãe que nos dá a vida de um modo tão extremamente violento. À qual se junta, pelo lado feminino, a vingança por ela não nos ter libertado de uma perpetuação da dor. As enfermeiras e médicas fazem aquilo que, em psicologia, se designa como “projeção” da sua dor e, num movimento coletivo de solidariedade abraçam, simbolicamente, a de todas as mulheres. É aqui que radica o sentimento de indiferença mas sobretudo de desprezo e admoestação por parte d@s profissionais, que são esmagadoramente do sexo feminino.(14)

Esta culpa que assumimos ter que pagar integra outras pulsões:

– um corpo que pecou por ter fornicado;

– o castigo divino por termos dado a maçã a Adão e todas as simbologias que tal ato comporta;

– a raiva por uma herança cheia de dívidas: sermos o ninho (15) da humanidade e termos que a pagar entregando o nosso corpo como sacrifício aos deuses.

Juntemos a isto o desprezo que a sociedade dá (hoje cada vez menos, felizmente) à mulher improdutiva, seja por opção “Não quero ser mãe”(16) ou fatores orgânicos. Temas que ficarão para futuras reflexões.

Em conclusão:

Poderemos pensar que se, em toda a evolução emocional do ato de parir, estava interiorizado esse inconsciente coletivo “a minha mãe, avó e todos os úteros que me antecederam foram capazes eu serei igual a elas” este ao sair da “tribo da casa” e passar a ser um ato médico adquiriu, finalmente, a possibilidade de se proceder a um ajuste de contas do tipo “aquilo que eu sofri que recebas em dobro”?

Poderemos dizer que é nesta espiral de pulsões conflituantes, qual tornado, que poderá radicar a expressão “as mulheres são as maiores cabras para as próprias mulheres” em que o desprezo dado a uma mulher a parir, por parte das outras mulheres(17) é o expoente máximo?

Gostaria que ficasse claro que de modo algum pretendo culpabilizar as enfermeiras e médicas (18), enquanto profissionais de saúde obstétrica. Tenho como objectivo, apenas, que reflitamos sobre o “porquê” destas ocorrências.(19) pois tratando o sintoma sem se ter consciência da causa a mudança, que urgentemente se impõe, mais não será do que um placebo. Temos que persistir na exigência dessa mudança de paradigma lutando por condições dignas. Tem que nos ser restituído o poder sobre o nosso corpo com a consequente satisfação de rever e reviver o momento do parto como uma função natural, como um momento de amor incondicional e não como algo errado, com um defeito, como um castigo. Que nunca mais, uma mulher se veja obrigada a renunciar ao desejo de ser mãe, de pleno direito, devido ao ambiente de extrema violência a que o seu corpo é submetido. Que nunca mais uma mulher seja chantageada de que se não colaborar estará a matar o seu filho. Que nunca mais uma mãe viva com a dor de que, naquele momento, lhe mataram o filho.

Em síntese:

na função biológica de parir a mulher passou do terror da morte para o terror da tortura e violação sobre o seu corpo.

Para quando o fim?

___________________________

(1) Nightingale e Fenwick: As fundadoras da enfermagem moderna; A Enfermagem em Portugal

(2) Saúde Reprodutiva

(3) Intervenções obstétricas durante o trabalho de parto

(4) Por que não foi Adão que deu a maçã a Eva?

(5) Feministashistéricas – Grupo do Facebook

(6) Inquérito às mulheres [portuguesas] sobre as suas experiências de parto

(7) Como se nasce em Portugal –  Entrevista a Dulce Morgado Neves, Jornal Mapa, 12/2/2020

(8) Mãe imperfeita – ler os comentários

(9) Recomendo a esplêndida análise feita por Carla Wook, aqui na Capital Magazine

(10) A dor em obstetrícia, Hospital Dr. Nélio Mendonça, 2015, Enfermeiras Carla Aveiro e Tatiana Velosa

(11) 25 anos das Comissões Nacionais de Saúde Materna e da Criança

(12) Por que foi adotada a posição de parir deitada

(13) A dor para além do parto – Se é hipersensível a imagens e testemunhos fortes não veja este vídeo

(14) Centrei a minha reflexão exclusivamente nos profissionais implicados em atos médicos que sabemos serem, historicamente, um domínio do género feminino “O género e suas possíveis repercussões na gerência da enfermagem

(15) Relembro que até à descoberta do óvulo o qual só viu a luz do dia em 1827 por Karl Ernst von Baer. Até ai pensava-se que o sémen era o único responsável por gerar uma vida e o corpo da mulher tinha como função única a de ninho.

(16) Só não quero ser mãe

(17) Fiz uma “monitorização de responsabilização” por sexo tendo verificado que dos 127 depoimentos recolhidos na internet, 122 eram atribuídos pelas parturientes a enfermeiras ou médicas. Sabendo que predomina o género feminino nesta profissão perante este tão elevado valor na atribuição de responsabilidades pela violência obstétrica não considero válido fazer outro tipo de extrapolações para além dos números absolutos. Não tendo esta reflexão qualquer pretensão de estudo académico penso que seria bem interessante que alguém pegasse nestas variáveis.

(18) Measuring mistreatment of women during childbirth: a review of terminology and methodological approaches

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Psicóloga desativada com uma costela, no feitio, de Brites de Almeida em que tal como ela é mais a fama do que o proveito. Entre 1960, em Trás-os-Montes onde fui parida e o Porto onde fui feita segundo rezava o meu pai quando farto das minhas impertinências desabafava "por que não fui à pesca nesse dia?" e hoje, Coimbra, do meu mundo fazem parte 5 rios, o primeiro dos quais no alto alentejo raiano e 12 localidades por chão onde muitas vezes me descalcei para ser alimentada. Não sei quem escreveu mas um dia li e tomei como minha "se vos contasse tudo o que penso e vejo seria internada" Saltimbanca me sinto desenguiçando o emaranhado das ideias, qual marioneta, no caos do mundo em que me sento a atuar no pequeno palco comandada por forças que não controlo.

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