Há culturas superiores? Há várias respostas possíveis.

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Jaipur

Há uns anos estava num jantar para celebrar o Ano Novo Chinês, em casa de um militar norte-americano. Ele era filho de um casal de pai americano (também militar) e mãe vietnamita (que se conheceram durante a guerra do Vietname, claro), e tinha vivido vários anos em Singapura. No jantar que nos ofereceram estava também um casal da Malásia e vários ocidentais (uns poucos de portugueses e mais um casal americano). Às tantas falou-se de Singapura, e eu era das poucas presentes que nunca tinha ido a Singapura. Uma divisão curiosa ocorreu: os ocidentais consideravam Singapura um estado policial opressivo, com excessivas regras (e, acrescento eu, muitas delas filhas do confucionismo que enforma a praxis chinesa) impostas à população; os orientais viam Singapura como o paraíso e paradigma de estado funcional.

Esta história vem a propósito do texto de João Miguel Tavares no Público (e não, por muito que o artigo seja simplista, talvez até por falta de espaço – estas coisas acontecem – João Miguel Tavares não é um supremacista branco). Para constatar que, desde logo, a primeira resposta à pergunta das culturas superiores é: o que é ‘cultura superior’ para um europeu provavelmente não coincide com o que é ‘cultura superior’ para um asiático. Pelo que aquilatar o que é uma cultura superior, garantindo que é a nossa, está logo doente de um eurocentrismo que fazíamos bem em deixar de parte rapidamente – porque eurocentrismo implica sempre não perceber o mundo além da Europa, nem a história das outras zonas do globo (que não é de todo a de uns bárbaros à espera da missão civilizadora europeia), nem aceitar que o mundo ocidental está a perder proeminência para outras culturas. Os chineses, por sua vez, têm uma cultura milenar à roda do sinocentrismo – e a maioria dos chineses vê a sua cultura como superior à ocidental sem qualquer hesitação.

Vamos por partes.

1. Não me custa nada reconhecer que a cultura de origem europeia é aquela onde eu mais gosto de viver. Tirando os grunhos alt right em número crescente, gosto de muito na Europa. A História, os monumentos, a diversidade, a liberdade e os direitos das mulheres (ainda assim longe de perfeitos), as cidades, as praias do Mediterrâneo, a literatura, a pintura, as democracias, a União Europeia e o espaço de Shengen e o comércio livre, o constitucionalismo, o liberalismo. E um quilométrico etc.

2. Não de somenos, gosto do respeito pelos direitos humanos na Europa. E dá à Europa (sobretudo na União Europeia) um lugar especial na hierarquia das culturas de facto ser a zona do mundo onde, apesar de tudo, mais se apreciam e respeitam os direitos humanos. Sucede que os Direitos Humanos não são uma construção perfeita (de facto garantem muito mais os direitos dos homens face aos perigos geralmente enfrentados pelos homens que os direitos das mulheres – que vêem muito mais vezes os seus direitos atropelados dentro das famílias e não somente pelo estado). E são, lá está, uma construção que segue os valores filosóficos e culturais europeus. Já aqui trouxe este debate.

Julgo os direitos humanos uma ótima utopia que devemos perseguir e são um fabuloso contributo europeu para a humanidade inteira. Em todo o caso, temos de questionar que sentido faz insistir nos direitos de privacidade na Índia, por exemplo? Ou nos direitos de propriedade junto das populações nómadas que circulam pelas zonas de fronteira de Myanmar, China, Vietname?

3. A propósito: China e Índia eram os países mais ricos do mundo até à revolução industrial – foi ‘a grande divergência’ que colocou a Europa (e, depois, os Estados Unidos e o Japão – sim, o Japão, que também se considera culturalmente superior) no crescimento que ainda não parou. E mais umas décadas e regressarão às posições que já tiveram – ainda que em termos per capita continuem mais pobres. Até ao Renascimento – apesar de a Idade Média estar longe da idade das trevas de que tem fama – o Médio Oriente era intelectualmente e culturalmente e socialmente muito mais agitado e liberal que a Europa. Até ao século XX, as mulheres tinham direitos nos países islâmicos que lhes estavam vedados na católica Europa. No século XX, é sabido, graças às sufragistas e ao feminismo, as mulheres emanciparam-se, enquanto que no islão houve uma vaga conservadora, com Sayiid Qutb, os deobandis e tutti quanti. Em suma: as culturas têm momentos, altos e baixos, não são estáticas.

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Woodcut print chinesa, dos anos 1950.

4. João Miguel Tavares fala de Shakespeare, e há que dizer que artisticamente a Europa (por muito que eu adore arte europeia) não é de todo superior a outras culturas. Basta passear pela Índia (Taj Mahal, rings a bell?) para perceber que não há nada arquitetonicamente mais fabuloso que os grandes palácios, mesquitas e túmulos indianos. Já ouviram falar da milenar arte budista (com exemplares lindos de morrer)? A pintura chinesa adquiriu uma maturidade (e beleza) séculos antes da europeia ganhar sentido da cor e da luz. A modernidade das aguarelas chinesas com uma quantidade assinalável de séculos em cima é de deixar qualquer amante (eu! eu! eu!) deleitado. Literatura? Bom, sabem que os livros da Bíblia – que são, antes de mais, produtos literários, e bem interessantes como produtos literários – não foram escritos na Europa, certo? (Tirando partes do Evangelho de João, que poderá ter sido escrito em Patmos.) E o que dizer dos monumentais Mahabharata e Ramayana? E de Lu Xun, esse mago de inícios do século XX? E de toda a tradição literária chinesa ou japonesa? Ou do teatro da Ásia do Sudeste? Podia continuar, mas percebem o meu ponto. De resto, o impacto da arte chinesa e japonesa (e indiana e do sudeste asiático) na arte europeia dos séculos XIX e XX é avassalador.

5. Foi no século V a.C. que mais ou menos simultaneamente em três zonas do globo surgiram protagonistas dos caminhos filosóficos que ainda nos conduzem. Sócrates e Platão na Grécia. Buda na Índia. Confúcio (e a seguir Mêncio mas também o taoismo) na China. Confesso que me é difícil hierarquizar entre os três. Que, de qualquer modo, revelam uma maturidade intelectual que não era só exclusiva da Europa.

6. Pelo que leio do artigo, parece-me que a superioridade das culturas se vê pela atração de imigrantes. Não concordo. A atração é somente económica. Por isso mesmo há emigrantes do Bangladesh na Índia (vivendo em condições atrozes, de resto) e emigrantes de toda a Ásia do sul e do sudeste no Dubai (local que por muitas razões, éticas e estéticas, me arrepia), por exemplo. E não, superioridade económica não equivale a superioridade cultural – ainda que possam coincidir e que o mecenato abonado, bem como um governo com dinheiro para gastar, tenham sempre sido um incentivo às artes e culturas.

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Taj Mahal

7. O que me leva a outro ponto. O materialismo europeu versus a espiritualidade asiática. Não gosto de glorificar a pobreza mascarando-a de cargas espirituais que dêem tonalidades supostamente alegres a misérias que são em si mesmo um atentado aos direitos e liberdades das pessoas. Em todo o caso, mais uma vez não vejo superioridade no materialismo europeu, e temos muito a aprender com a espiritualidade e filosofia asiáticas, muito mais holísticas e completas e harmónicas. Enquanto que o modo de vida ocidental é cada vez mais desligado de verdades e necessidades fundamentais do ser humano, com pessoas partidas e espartilhadas em horários de escravatura (mesmo que tenham salários com vários zeros), sem vida familiar ou social ou amorosa. Com crianças colocadas horas a fio em aulas, com cargas horárias e exigências como se fossem adultos. Tudo isto é muito pouco saudável e superior.

8. Também não podemos esquecer os efeitos que a civilização superior europeia teve no resto do mundo – e ainda tem, porque as consequências persistem. Lamento dizer, mas o colonialismo teve alguns efeitos positivos: levou métodos de organização burocrática a locais onde não existiam (o estado indiano ainda é o resultado do estado britânico que lá foi montado); terminaram-se hábitos horripilantes como sacrifícios humanos, os satis na Índia, antropofagia. Por outro lado, a brutalidade imperou. A escravatura (que tem um veneno que dura até hoje). A VOC e a EIC massacraram gente sem pudor no Sudeste Asiático e na Índia em prol de ganharem dinheiro para os acionistas na Holanda e Londres. A Inglaterra espatifou a China inundando-a de ópio. O que os europeus fizeram à China – com os Tratados Desiguais, a ocupação de boa parte do território, enfim, com o século de humilhações que vai da primeira Guerra do Ópio até 1945 – é algo que ainda está bem presente na política chinesa e que provavelmente pagaremos de uma forma ou outra. O estabelecimento de direitos de propriedade na Índia – quando os direitos à terra eram diferentes e múltiplos, de várias pessoas, famílias ou entidades, sendo muito deles terminados pelos britânicos – foi gerador de persistente desigualdade social e pobreza. E o que dizer do estabelecimento de fronteiras a olho, ou a regra e esquadro, criando ou desfazendo países como se os sentimentos nacionalistas ou afinidades regionais não existissem?

9. Isto dito, claro que há práticas inaceitáveis, como a mutilação genital feminina, os casamentos forçados, os casamentos infantis, lapidações, hábitos das zonas tribais do Paquistão, imposições de burqas e niqabs e hijabs. A Arábia Saudita no geral. As violações de guerra que ocorrem por todo o mundo. O trabalho infantil. A venda de mulheres para serem criadas/escravas ou para tráfico sexual. A exploração sexual de menores. A poligamia. As castas na Índia (o estatuto dos dalit é uma absoluta iniquidade). Etc. Etc. Etc. E, sim, culturas que os pratiquem e incentivem devem ser denunciadas.

10. Para finalizar, deixo umas palavras da cultura superior. Holocausto. Violações em massa na guerra da Jugoslávia. Violações em massa pelos exércitos aliados quando derrotaram a Alemanha na Segunda Guerra Mundial.

Ufa, que este mundo que vê tudo a preto e branco, sempre cheio de vontade de criar divisões e guerrilhas, é muito cansativo. Férias hedonísticas e sensoriais, please, num retiro asiático.

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Delhi

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