Miguel Sousa Tavares é que fala de mais

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Há uns tempos fui a um lançamento de um livro. Já nem sei quando. Foi antes da pandemia, aí durante o ano de 2019. No lançamento do livro havia quatro oradores: a editora do livro, uma convidada que faria a apresentação, outro convidado que faria mais uma apresentação e, para grande final, a autora. A editora falou, uma pequena introdução, teve piada, passou à senhora seguinte. Esta falou uns bons minutos, foi interessante, adequada, vida, uma apresentação interessante.

Depois veio o senhor que faria a apresentação da obra. Um advogado conhecido da nossa praça. Falou, falou, falou. Monocórdico, entediante, ao fim de um minuto estava toda a audiência a pegar nos telemóveis para ver as redes sociais ou mandar uma mensagem a um qualquer ente querido. Não sei dizer quanto tempo falou. Foi tanto tempo que eu, tendo nesse dia um jantar, tive de sair entretanto, estava o advogado monocórdico falando ainda. Nem consegui ouvir a autora.

Este cenário não é incomum. Qualquer pessoa que tenha reuniões com frequência sabe como os homens adoram ouvir-se. Falam, falam, falam, repetem-se, repetem os demais como se se estivessem a repetir a si próprios, perdem-se no fio do pensamento, contam piadas, continuam a falar. Claro que não são todos os homens assim – mas o facto permanece: há muitos homens que falam e falam e falam, não por terem conteúdo substantivo para tanta oratória mas porque gostam de se ouvir.

Já as mulheres, nas suas profissões, geralmente são muito mais concisas e demoram menos tempo a dizer o que têm para dizer. Bom, provavelmente por uma razão simples: as mulheres nas reuniões são mais interrompidas pelos homens; e os homens falam muito maior porção do tempo, por diversas razões (desde as interrupções mencionadas até ao simples facto de não darem a palavra e se censurar que as mulheres tomem a iniciativa de impor a sua necessidade de falar). Como temos todas experiência disto, não perdemos o nosso tempo de fala despejando informação desnecessária. Vamos de imediato ao osso. Nem com a passagem para as reuniões online, com os confinamentos e o teletrabalho, o cenário mudou.

Mas apesar de as mulheres falarem menos – comprovadamente – nas reuniões, há homens que gostam muito de repetir os clichés e continuam com a converseta de as mulheres falarem muito. E, pior, de assuntos sem importância. Tudo ao contrário da realidade, mas a realidade nunca impediu os sexistas de verterem ideias inventadas como se da ordem natural das coisas se tratasse.

O presidente do Comité Olímpico Japonês – que, em boa verdade, já devia estar reformado aos 83 anos – há pouco tempo decidiu fazer essa tirada numa reunião: ‘as mulheres falam de mais’. Evidentemente houve escândalo e o dito terminou demitindo-se.

Há dias, o inevitável Miguel Sousa Tavares defendeu o sexista olímpico na televisão, afirmando que é o que toda a gente diz: as mulheres falam de mais. Pronto, está determinado pelo comentador (que, em boa verdade, também devia estar já reformado).

Já expus lá em cima por que são falsas as afirmações quer do japonês do Comité Olímpico quer de Miguel Sousa Tavares. Ficando-nos pelo nosso país, é muito típico que um comentador televisivo tenha tempo de antena para proclamar tiradas sexistas. Um comentador de tão boa qualidade que nem se dá ao trabalho de se informar dos assuntos sobre os quais opina. E é particularmente grave que Miguel Sousa Tavares queira ainda constranger mais as mulheres para falarem menos, e aos pares para lhes darem menos espaço para falar – então se as mulheres falam de mais é bom que comecem a falar menos, certo? É uma estratégia tão boa como qualquer outra para efetivamente calar mulheres.

Portanto, não: as mulheres não fala de mais. Quem fala de mais são comentadores sexistas como Miguel Sousa Tavares. Além de falarem de mais, são ignorantes e proferem falsidades perante audiências de tv.

Bom, promovem falsidades se tomarmos os factos como medida das opiniões. Porque, para pessoas como o octagenário japonês e Miguel Sousa Tavares, as mulheres falam efectivamente de mais – sempre que não estão caladas.

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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