
Poderemos lê-la, hoje, com os mesmos olhos com que foi escrita?
Será a Bíblia um livro anti feminista?
Há três dogmas que tenho para mim há muitos anos:
1. A Bíblia é a matriz da nossa cultura.
Goste-se ou não se goste das historietas, concorde-se com elas ou não, veja-se nela toda a centralidade dos males que assolam o mundo, sobretudo a subjugação das mulheres e tudo o mais de maléfico que nos ocorra… sobre isto não há volta a dar e repito, a Bíblia é um livro que nos conduziu ao que somos hoje na nossa cultura ocidental.
2. De tudo mas mesmo de tudo se pode fazer mau uso.
Com uma faca posso abrir um pão e barrá-lo com manteiga como posso usá-la para ferir e até matar alguém. O mesmo principio se aplica ao conhecimento seja ele da área das ciências ditas exatas ou as nomotéticas assim como à filosofia e espiritualidade.
3. Um mau uso dos preceitos bíblicos.
No que à espiritualidade diz respeito não tenho dúvidas que existiu, intencionalmente ou não isso é outra análise que não cabe aqui.
Há muitas mulheres e homens (sobretudo mulheres porque as mais sacrificadas), por esse mundo fora, que estão a redefinir ou a reinventar a linguagem ai usada assim como a desconstruir muitas das traduções.
Deixo apenas três de muitos exemplos:
1. Hoje sabemos, sem margem para duvidas, que os fluídos corporais podem transmitir doenças. Por isso quando em Levítico, 15:18:33 se fala da mulher que menstrua e do homem que ejacula como ficando impuros apenas pretende dizer às pessoas que estão mais sujeitas a apanhar doenças nesses momentos e por isso todos os cuidados são poucos. (sobre o ser até à tarde são outras questões antropológicas que tem a ver com rituais do sagrado e do profano, entre outras que não são aqui abordadas por não serem o foco desta minha reflexão);
2. Em Levítico 12:2:8 ficamos a saber que “Se uma mulher der à luz (…) ela ficará impura…
Mais uma vez vemos aqui uma preocupação em proteger a mulher. Hoje sabemos como um corpo que acabou de parir fica frágil e deprimido a todo o tipo de doenças. No fundo ao estar a “impedir” a mulher de ir ao templo nesse período mais não está do que a estabelecer um momento de recobro para se recompor e ter saúde para cuidar da sua cria.
3. Em João 4:16:19 sabemos que Jesus ao encontrar a samaritana pede-lhe para ela ir chamar o marido ao que ela responde que não tem, Então Jesus respondeu
– Falaste corretamente, dizendo que não tens marido pois já tiveste cinco e o que tens agora também não é teu marido.
Conta-nos o Evangelho que a mulher respondeu com alegria:
– Vejo que és profeta.
Jesus diz àquela mulher que os cinco homens foram ‘maridos’ mas não a amaram como mulher. Jesus alerta-a que este sexto é igual aos anteriores. Ao cruzar-se com Jesus ela percebe que o poder de ser ou não amada está nela, na sua autonomia. Então ela larga tudo e vai para a cidade.
– Venham ver o homem que disse tudo o que eu tenho feito. Será que ele é o Messias?
Muitos samaritanos daquela cidade acreditaram em Jesus porque a mulher tinha dito:
– Ele disse-me tudo o que eu tenho feito.
Não há neste episódio bíblico uma única referência a esta mulher ser uma prostituta ou uma vadia como sempre nos quiseram fazer acreditar os homens da igreja.

Estamos no dia 8 de março de 2022, dia da mulher, não quis deixar passar esta data sem trazer o nome de uma das principais sufragistas, Elisabeth Cady Stanton que também foi pioneira numa versão da Bíblia que nunca interessou divulgar.
Conhecimento é poder pelo que “queimar” a Bíblia sem a conhecermos e sem a lermos no seu contexto recentrando, no presente, a linguagem própria de uma época quem perde são as mulheres e a causa feminista. Tomo como meus os argumentos de Elisabeth Cady Stanton “que o texto bíblico estava no centro da formação moral das mulheres, e se esta referência não fosse relida na perspetiva do movimento de mulheres, que mais tarde se caracterizou como movimento feminista, o direito ao voto não se configuraria em condição necessária para que as mulheres adentrassem os espaços de poder e transformassem o direito em justiça”
