Por onde anda a Silly Season? O que vai ser da Rentrée?

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galopamos pelas costas dos montes no interior
da terra a comer eucaliptos a comer os entulhos de feno
a cuspir o vento a cuspir o tempo a cuspir
o tempo
o tempo que os comboios do sentido contrário engolem
do sentido contrário roubam-nos o tempo meu amor
“Intercidades”. Margarida Vale de Gato

Sempre gostei de estações. Falo das estações do ano. Mas também poderia falar das estações de comboio, do vai e vem, de partidas e chegadas, das promessas nas despedidas, das expectativas de uma chegada. A cada estação do ano, as suas cores, os seus cheiros, o seu modus vivendi, da praia às lareiras, do pôr do sol a uma sopa quente. Da Primavera que chega em espasmos de renovação, a natureza a despertar da hibernação de mantas de lã. Tímida ou destemidamente, os pés vestidos de sandálias e as unhas pintadas começam a sair à rua. E a libertação de meias e collants. Ah! Esse momento de libertação das pernas e pés espartilhados. Do verão, dos banhos de mar, dos petiscos em pé descalço. Das castanhas, do fumo das assadeiras que não o nevoeiro matinal das praias do Oeste, no Verão, mas um sinal que uma nova estação deu entrada na linha 1. Até ao primeiro dia em que temos que calçar as botas de cano alto. De novo.

Geralmente associado aos meses de Verão, sempre se falou de uma estação particular que não é referida nos livros de Estudo do Meio. A Silly Season: 1. a period (such as late summer) when the mass media often focus on trivial or frivolous matters for lack of major news stories. 2. a period marked by frivolous, outlandish, or illogical activity or behavior. Na Infopédia, podemos encontrar a expressão traduzida por “estação ridícula”, referindo que os critérios de seleção jornalísticos se tornam mais flexíveis, passando a considerar como relevantes assuntos que, geralmente, não constituiriam objeto de notícia. Nada refere sobre ser, também, um período marcado por atividades e comportamentos frívolos, estranhos ou ilógicos. “Estação ridícula” talvez seja uma tradução forte demais. Estação fútil? Arrisco: estação do “vamos mas é a banhos, enterramos a cabeça na areia e voltamos em meados de setembro”. Critérios flexíveis.

Este ano, ainda não dei pela sua chegada. Talvez pela pandemia, talvez pelas enxurradas e cheias que apanharam de surpresa o centro da europa e na China ou pelos fogos que arderam a bem se ver por terras gregas e turcas, com temperaturas a atingir mais de 45 graus. Alterações climáticas diz a causa. Tema flexível com efeitos, mas de silly pouco tem. Talvez pelos Jogos Olímpicos, pela avidez de encontrarmos referências inspiradoras de superação e vitórias limpas. E aqui os comentários do ódio e do racismo saltaram bem alto. Dos quatro medalhados, três têm origens africanas. Os comentários nas redes sociais de “não são totalmente Portugueses” não conseguiram pular as barreiras do preconceito. Sem medalhas, nem diplomas. E das questões de saúde mental, faladas abertamente entre piruetas. Também nada silly, portanto. Talvez pelo estado de sitio no Afeganistão, em que uns se retiram (outros virão), entregando o poder a um estado talibã em que homens e crianças desesperam e as mulheres têm que usar não uma máscara que lhes tapa o nariz e a boca, mas uma mordaça no corpo inteiro, ridicularizando, assim, os que dizem que vivemos em ditadura.

A estação silly já nada de silly tem. Pensando bem, há já algum tempo. E arrisco, talvez, algumas hipóteses: as estações andam tão baralhadas como nós, os não iluminados pelas certezas absolutas, ou a silly season tornou-se viral, sem espaço, nem tempo definidos. Por mais que tentemos, já não conseguimos viver, em pleno, as silly seasons. A não ser que enterremos a cabeça na areia da praia, como avestruzes. Arrisco, mais uma vez. Já não se fala em silly season porque já não existe a estação. É um contínuo. Já não é delimitada no tempo e no espaço. Tudo e nada são relevantes, nada e tudo são irrelevantes, efémeros, fugazes, o ano inteiro. Misturam-se numa malga de cores, de sons e de cheiros que a custo e com a atenção redobrada, conseguimos reconhecer. Como as estações do ano. Frívolo, estranho ou ilógico em estado permanente.

E a Rentrée?

Sem o protagonismo de outros tempos, das novidades frescas, da cabeça descansada e arejada das férias, a rentrée será, provavelmente, abalroada por uma silly season que já não existe como estação. Com menos critérios flexíveis porque o mundo não está para brincadeiras. Confesso que me preocupa este desconcerto. Sabemos que nada de silly nos espera. Sabemos que tudo de silly nos espera. Mas continuemos, como diz Jorge Palma.

Enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar

E até pode acontecer que D. Sebastião reapareça por entre o fumo das assadeiras, com um cartucho de castanhas bem quentes na mão, sal extra a pedido. Sempre gostei de estações. E das cores do Outono em particular.  

Imagem: Mona Lisa, de Gelitin (Mixed media on wood). The Anarchy of Art. Exposição Wonderland. Albertina Modern, Viena. Julho 2021.

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