O machismo simétrico de certa extrema esquerda e da alt right, a propósito do Afeganistão

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Com a retirada americana do Afeganistão vimos um fenómeno curioso: parte da extrema esquerda tem um anti-americanismo tão marcado e um relativismo cultural de tal modo escancarado que notoriamente ficou satisfeita, de forma mais assumida ou mais envergonhada, com a vitória dos taliban, a emblemática conquista de Kabul, a capital, e a ocupação de boa parte do país. Os taliban, o grupo que implementou no Afeganistão o regime mais opressor das mulheres de que há memória – e que só líricos mal intencionados podem acreditar ter mudado, desde logo vendo o atentado terrorista a uma maternidade em Kabul que fizeram no ano passado, bem como não ignorando os relatos já existentes de raptos de raparigas adolescentes para serem casadas compulsivamente com os guerreiros taliban. Estes, prenhes de generosidade, já garantiram defender (ataque de tosse) os direitos das mulheres dentro da sharia.

Sharia – o código legal vindo da Península Arábica do século VII que determina que maridos podem bater em mulheres, as adúlteras seguem para apedrejamento, os filhos pertencem ao pai em caso de divórcio, as mulheres têm inúmeras restrições à sua vida e aos seus movimentos, dão cobertura a hábitos (correntes nas zonas tribais do Paquistão, por exemplo) como a violação de mulheres como punição por comportamentos ditos desviantes (dar a mão a um namorado, essa loucura), até as heranças das mulheres são somente uma parte do que recebem os homens. (Além dos maravilhosos castigos corporais para os dois sexos). É como quem diz: um quadro legal vindo da Idade Média que de modo nenhum defende direitos das mulheres como são vistos no século XXI (exceto nas cabeças de relativistas retintos).

Este regozijo, ou esta aceitação sem incómodo, mostra um desprezo pelos mais básicos direitos e liberdades das mulheres que é impossível de contornar. Os direitos das mulheres – mesmo nos casos de brutais opressões ou de aplicação da tenebrosa sharia – são afinal uma causa menos importante que o anti-americanismo, o anti-imperialismo, o anti-capitalismo. Acima de tudo, são menos importantes que a defesa de culturas e populações estrangeiras, incluindo nos casos em que essas culturas têm hábitos e valores bárbaros.

Portanto, para esta extrema esquerda, o machismo é um grande problema – mas só quando os perpetradores são brancos e europeus ou americanos. Qualquer assédio de rua é causa de grande gritaria com o patriarcado (branco). Contudo, casamentos compulsivos de raparigas adolescentes, restrições profissionais draconianas, moral sexual punitiva de mulheres, imposições de uso de burkas ou niqabs, incendiar a sua mulher quando se quer puni-la ou se tem vontade de casar com outra, ataques com ácido como represálias por fim de casamento – enfim, tudo isto, se se passa em longitudes ou latitudes distantes, é visto por esta esquerda escarlate com bonomia. Afinal quem somos nós, europeus, para impor os nossos valores aos demais povos? Que arrogância supor tal coisa. Que complexo de white saviour (estou a repetir o que já li).

Como bem diz a feminista egípcia Mona Eltahawy – mulher bem de esquerda, de resto – no livro Headscarves And Hymens, Why The Middle East Needs a Sexual Revolution, há uma grande tendência para os progressistas de esquerda ocidentais apoiarem os setores mais conservadores de outras comunidades, deitando de caminho para debaixo do comboio os direitos das mulheres (ou LGBT). Tudo em prol da tolerância para com ‘o outro’.

Headscarves and Hymens, Mona Eltahawhy
Headscarves and Hymens, Mona Eltahawy

Este machismo da extrema esquerda aplicado às mulheres de outras culturas é o simétrico do machismo da alt right. Estes são o contrário: sofrem muito, horrores (nem dormem!) com as violações de mulheres e com a cultura de violação – desde que tudo isto se passe na Índia ou ainda mais longe. Já nas violações nacionais, bom, as mulheres são umas mentirosas, não há indícios nenhuns, o que é que quer uma rapariga que vai beber para uma discoteca e falar com estranhos? O que é que pensa da vida uma esgrouviada que sai à noite com as amigas com roupa mais que reduzida?

Para estas almas, a situação das mulheres afegãs é grande motivo de aflição. Escrevem crónicas nos jornais e tudo, de coração dilacerado com a sorte das meninas e mulheres afegãs. Nas redes sociais há choraminguice e solidariedade sem fim com as pobres oprimidas a mais de 2500 km de distância.

Já as mulheres portuguesas não comovem tanto. Nunca se avistam estas almas com preocupações com as diferenças salariais entre homens e mulheres, os efeitos económicos da crise da covid nas mulheres (90% dos empregos destruídos em Portugal foram de mulheres) passam-lhes ao lado, a violência doméstica endémica e a violência sexual só é motivo de escândalo se as vítimas fazem o favor de morrer para provar que existiu mesmo violência, fora disso, bem, é a palavra de uma mulher contra um homem e acredita-se, claro, no homem. Tarefas de cuidado e domésticas sobretudo em cima de mulheres – mas qual é o problema? Não deve ser assim?! As causas feministas são todas ridicularizadas sem exceção. Odeiam de morte políticas como a Lei da Paridade que garante representação política e económica feminina.

O machismo e os direitos das mulheres são uma grande preocupação, mas só lá longe, nos antípodas. Preferencialmente com povos com cores de pele mais amareladas ou acastanhadas. Por cá estamos tão bem que, no meio da desolação que é o que se passa no Afeganistão, até se lembram de escrever crónicas a atacar as feministas nacionais.

Supostamente as feministas portuguesas têm armamento pesado e somos nós que poderíamos endireitar para as mulheres afegãs o seu país. Onde falharam os Estados Unidos, nós sairíamos vencedoras e em glória. Só que, como somos muito maldosas, ficamos aqui sossegadas em Portugal, ao invés de salvarmos as nossas irmãs afegãs. Mesmo más que são as feministas portuguesas, estão a ver?

Para estes machistas alt right socorro-me outra vez de Mona Eltahawy. A autora aconselha os muito preocupados com a condição das mulheres, mas só lá longe, a ajudar os movimentos feministas dos seus próprios países – que é onde têm maior possibilidade de eficácia em mudar algo. Claro que não o farão. O objetivo é distrair as mulheres nacionais com a maior opressão das mulheres noutras paragens. E tentar vender o argumento ‘enquanto há meninas a casarem com 9 anos no Iémen temos é de impedir que tal atrocidade aconteça antes de tratarmos dos nossos próprios problemas’ – isso seria taaaaaão egoísta. E como os problemas do resto do mundo nunca se resolvem totalmente, nunca chegaríamos a dedicar a nossa contestação ao que se passa por cá. E os sexistas nacionais ficariam descansados sem terem de aturar feministas. Bingo.

Uns não querem saber dos atropelos aos direitos das mulheres noutras paragens e culturas. Outros nem aceitam que existem atropelos aos direitos das mulheres por cá. Mas, todos, fazem grande alarido se notam ataques a esses direitos fora das zonas que querem proteger. Os direitos das mulheres são só, para ambos os grupos, instrumentos de luta política, a usar ou a abandonar como melhor servir.

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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