SIN VINO NO HAY CAMINO!

0
Combarro, a aldeia piscatória pincelada a espigueiros e ruelas em empedrado

PARTE III – Pedras no caminho e o mí(s)tico Avatar

Texto de Mariana Tavares Beleza, fotorreportagem de Marta Gonzaga.

[Parte I – Tudo começa por um primeiro passo, de preferência português!]

[Parte II – Sin tapas tampoco]

De Pontevedra a Ribadumia

Pontevedra, a cidade que dá de beber a quem passa

Acordámos cedo (ou seja, mais cedo do que o habitual) porque queríamos descortinar um pouco da cidade hospitaleira de Pontevedra, a começar pelo seu monumento mais representativo e marco do Caminho Português de Santiago a capela da Virgem Peregrina.

De fins do século XVIII, de traça barroca com detalhes neoclássicos, a planta da Capela da Virgem Peregrina é inspirada numa vieira, o símbolo dos peregrinos, e foi na imagem da mesma que colocámos as nossas velas de agradecimento pelo caminho, pelas nossas filhas, e por todas as graças que nos aguardavam. Subimos ao topo com uma vista panorâmica sobre a cidade-capital da província homónima, nas margens do rio Lérez. O que guardo de Pontevedra, mais do que todo o empedrado, de igrejas e pontes para todos os tamanhos e soberbas casas brasonadas, são as suas inúmeras esplanadas, outrora a transbordar de vida. Claro que quisemos absorver todo aquele ambiente, mesmo a meia haste, e sentámo-nos numa esplanada a beber um café. O espanto não durou muito já que, num gesto brusco, deixei cair o meu iPhone, que se abriu em dois e não deu mais sinal de vida. Claro que fiquei em pânico – poucas coisas, das apelidadas de insignificantes, nos invadem tanto de pânico como ficar sem telemóvel. Depois do choque, foi procurar uma loja que o desenrascasse por mais uns dias, pelo menos até ao fim do caminho. E lá encontrámos uma loja de uns chineses que conseguiram, com uma peça, ressuscitá-lo e, por uma pequena fortuna, dar-lhe vida por mais uns dias.

Com isto, não fomos ao afamado Museu da cidade, e só retomámos o caminho de tarde. E tivemos muita sorte, porque ao contrário do que havia lido num site, o percurso até Combarro não somava 14 quilómetros, e sim seis.  É nesta etapa que existe uma bifurcação no percurso: ou se segue até Caldas de los Reyes, pelo Caminho Português Clássico, ou se vira à esquerda para a chamada Variante Espiritual, com esse nome porque foi por esta via que se realizou la translatio do Apóstolo Tiago, descortinada adiante.

Em Combarro, com a maré baixa, alguns locais aproveitam para passear na baía quase seca e presenteiam-nos com uma visão deslumbrante

Combarro é uma aldeia piscatória pincelada por espigueiros e ruelas em empedrado, casas encurtadas e restaurantes castiços. Ficámos num apartamento e jantámos muito bem num restaurante que parecia saído de um filme de piratas, uma sala em pedra, com cabos e motivos náuticos a lembrar os artefactos dos Piratas das Caraíbas. Deitámo-nos regaladas e na expetativa do dia seguinte em que iríamos conhecer o Mosteiro de Armenteira e percorrer a mí(s)tica «rota da pedra e da água».

A Marta não se sentia bem, e ao contrário do planeado, acabámos por ter de sair mais tarde. Confesso que estava um bocadinho triste pois esta era a etapa que mais me entusiasmava, e de todas conhecida como a mais bonita. Queria percorrê-la com tempo e durante o dia. Sabia que tal não ia acontecer, mas senti uma certeza no meu coração: havia de voltar.

E, se não partíssemos àquela hora tardia, não seríamos presenteadas com o espetáculo de cavalos a caminhar sobre aquela baía de ria quase seca, com a luz a bater nos espigueiros e uma aura cinematográfica.

Recompostas, lá nos fizemos ao caminho, que iniciou com cerca de oito quilómetros de subida, sem nenhum sítio onde nos abastecermos, nem sequer uma das bem-fadadas fontes de água cristalina onde atestávamos as nossas garrafas. A beleza do cenário, que muda de árido para um bosque verdejante nos últimos quilómetros, atenuou os gemidos silenciosos das nossas benditas pernas. No final deste troço, deparámos com a grandiosidade do Mosteiro de Armenteira. Só pecámos por chegar por volta das 16h00, e ter de retomar caminho rapidamente, falhando as vésperas e a tradicional bênção das freiras de final de tarde. É um local de paz absoluta, onde gostaria de permanecer sem tempo, contudo cá estávamos a recolher pedras no caminho, não para erguer um mosteiro, por sinal também de pedra, mas um castelo, o nosso castelo com as nossas dores transmutadas em aceitação pelo que, simplesmente, é. Por outras palavras, viver em fé.

O especial Mosteiro de Armenteira
 

 Houve tempo de dar uma volta pelo claustro, comprar óleo essencial de camélia e um terço e iniciámos a «rota da pedra e da água» já a trémula luz. Ao longo de oito quilómetros do que a minha amiga Victoria apelidou de «bosque dos duentes», encontrámos dezenas de moinhos de água, atualmente obsoletos na função, mas a cumprir a missão de nos transportar para tempos longínquos. Não foi possível refrescarmo-nos nas águas do rio Armenteira, perdermo-nos naquela vereda encantada, nem meditarmos num dos seus recantos, estávamos a contrarrelógio para atingirmos Ribadumia no chamado lusco-fusco.

Quando planeei a viagem, receei não conseguir subir a encosta até Armenteira no final da «etapa-raiz» Pontevedra-Armenteira e, por isso, em vez dos 23 quilómetros, calcorreámos apenas seis nesse dia (erro meu que, como referi, julguei serem 14). Enquanto escrevo esta crónica (mais uma tese!), penso que conseguiria fazê-lo, hei-de fazê-lo, bem como receber a bênção das freiras e até pernoitar no mosteiro; e está inscrito nas estrelas que irei voltar para cavaquear com os duendes na aurora, intercetar os raios de sol na margem dos lagos e afagar demoradamente os tapetes de musgo naquele cenário do Avatar. Caminhar envolta de musgo recorda-me da vida que pode brotar do mais inóspito e inesperado dos lugares. Admiro as naturezas mortas, troncos que repousam no leito do rio, e o granito das casas liliputianas que outrora conheceram a azáfama da labuta diária dos saudosos moleiros. Os raios de sol, esses, pois foram esses que me faltaram para compor este ramalhete de emoções boas, esse elemento fogo que serena o meu fogo interno, essas horas distantes do tempo crepuscular no qual caminhamos sem pressa de chegar.

Vamos seguindo as setas amarelas do caminho e circundando as azuis no sentido oposto (estas indicam a direção de Fátima). E perseguindo a tão afamada vieira, questionámos-nos: porque é então a vieira o símbolo dos peregrinos e especialmente do Camino, a ponto de muitos (nós, inclusive) a querermos transportar em evidência nas nossas companheiras-mochilas?

Cansadas, mas felizes a celebrar a conquista de mais um dia

Pois, tal como a tapa, também a vieira é alvo de lendas, histórias, alegorias variadas. É certo que olhando para ela nos apercebemos de uma simetria inexistente em nenhuma outra concha, o que lhe confere uma mística particular. Ora, reza a lenda (ou uma delas) que após se tornar mártir na Judeia, decorria o ano de 43, o apóstolo Tiago, ou Santiago, foi trazido de volta à Hispânia, onde tinha levado a cabo a sua grande missão evangelizadora, por alguns discípulos via mar (daí a Variante Espiritual do Caminho Português que escolhemos percorrer, com um troço marítimo…ou talvez não…a ver vão!). Ao chegarem às Ilhas Cíes, os passageiros repararam que estava a celebrar-se um casamento na praia. Num dos jogos tradicionais, num descuido, o noivo e o seu cavalo entraram mar adentro e começaram a afogar-se. Eis quando os destroçados noiva e convidados viram que junto à barca de pedra que transportava o apóstolo, ambos se reerguiam das águas envoltos numa série de vieiras. Os discípulos de Tiago interpretaram o acontecimento como um milagre e convidaram o noivo a bordo. O resultado foi o jovem converter-se ao cristianismo. E em quórum, por certo, os discípulos deliberaram que este milagre deveria ser perpetuado por todos aqueles que iam em peregrinação venerar o corpo do apóstolo. Como? Levando consigo uma vieira até Compostela. Ah, a vieira é também a concha representada n´O Nascimento de Vénus de Botticelli… e um dos ingredientes preferidos do chef Gordon Ramsay, as suas omnipresentes scallops! Deixando-me de fait-divers e dando corda às sapatilhas, lá nos levantámos na sem-graça Ribadumia para começar mais uma jornada, a penúltima etapa até à costeira Villanueva de Arousa.

Artigo anteriorSIN VINO NO HAY CAMINO!
Próximo artigoSIN VINO NO HAY CAMINO!
Viajante de largas distâncias e curtas amarras. Criativa com ambições de criadora. Ébria da Vida. Amante da Língua Portuguesa. Mãe da Beatriz e (dona) da Viola. 2+2=5, economista de formação. Pessoas, diversidade, chá, vinho, cães, yoga, livros, livre.

Deixe um comentário. Acreditamos na responsabilização das opiniões. Existe moderação de comentários. Os comentários anónimos ou de identificação confusa não serão aprovados, bem como os que contenham insultos, desinformação, publicidade, contenham discurso de ódio, apelem à violência ou promovam ideologias de menorização de outrém.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.