PARTE II – Sin tapas tampoco
Texto de Mariana Tavares Beleza. Fotorreportagem de Marta Gonzaga.
[Parte I – Tudo começa por um primeiro passo, de preferência português!]
De Tuy a Pontevedra

É a mais pura das verdades, ao longo do Caminho Português de Santiago. À nossa máxima «Sin vino no hay camino» bem pode juntar-se o epílogo «Sin tapas tampoco!» É aliás muito simples percorrer todas as etapas do Caminho sem gastar muito em alimentação, isto porque basta-nos pedir una copa ou una caña para sermos presenteadas com una tapa ou un pincho, na maior parte das vezes muito bem aviados!
Ora, vale a pena partilhar a história da tapa, este costume espanhol tão apreciado além-fronteiras. Existem várias tradições orais acerca da sua origem, mas reza a minha favorita que as tapas surgiram no século XIII, durante o reinado de D. Afonso X de Leão e Castela que, por estar doente, se viu «obrigado» a tomar alguns goles de vinho a várias horas do dia. (Médicos visionários estes da corte, a antecipar o poder curador e cicatrizante dos prazeres de Baco na atenuação de dores físicas e de alma!:- ). Perspicaz, o soberano acompanhava cada «medicação» com uma pequena porção de comida para «tapar» os efeitos do álcool. Após se recuperar, determinou que nas Pousadas de Castela e Leão só se deveria servir vinho acompanhado de pequenas porções de comida, como forma de cortesia e de evitar embriaguezes e desacatos. Outra lenda engraçada conta que durante o reinado dos reis Católicos, já no século XVI, devido aos ditos desacatos na saída das bodegas, obrigaram os taberneiros a servir, em cima do copo de vinho ou de cerveja, uma tapa. Os outrora desordeiros teriam de comer toda a tapa para então poder destapar o copo e começar a beber.
Seja qual for a história do seu surgimento – e há muitas mais – a arte do tapeo estendeu-se a toda a Espanha, havendo muitos locais onde assistimos a este singular acolhimento.
No nosso caso, a arte do tapeo traduzia-se na hospitalidade galega no seu expoente máximo, cortesia que decidimos experienciar cerca de dois quilómetros antes de chegar ao destino de cada dia, esbodegadas e em qualquer bodega que encontrássemos.
Deixemo-nos de histórias de forrar o estômago e regressemos ao nosso caminho. Saímos de Tuy por volta das 11h00 (a nossa vespertinice ou «vespertice» em ação), depois de um bom pequeno-almoço, e sem tempo para explorar esta cidade medieval; tirámos algumas fotografias na praça do Coreto, admirámos os seus imponentes casarões de pedra, e pusemo-nos no caminho pelas vielas do seu centro histórico. Eu de «camisola amarela» como bom prenúncio. Faltavam 115 quilómetros até Santiago de Compostela. Nesse dia, eram “apenas” 18 quilómetros até à vila industrial de O Porriño. E a pergunta que nos assombrava: «serei capaz?».

Na verdade, os primeiros quilómetros de cada etapa foram os que nos custaram mais: foi o habituarmo-nos ao peso da mochila, ao incómodo da máscara, ao corpo a adaptar-se ao ritmo acelerado que lhe estávamos a impor. «Não fales comigo nos primeiros dois quilómetros», disse logo à Marta. «São os que me custam mais.» E lá respirei o melhor que conseguia, de pano na boca (à saída das cidades era imperativo). Bendita Yoga, onde aprendi um conjunto de técnicas respiratórias que me ajudaram, principalmente, nos inícios, nas subidas, nas alturas em que a ansiedade espreita. Confesso, aliás, que um dos meus maiores receios era não ter feito uma preparação comme il faut, com caminhadas várias nos dias que antecedem a empreitada. Fiz algumas, mas não com a intensidade e frequência que me foi aconselhado a fazer. Fundamental é saber o que é uma longa caminhada, e já ter feito algumas para não se ser surpreendido. Já tinha ido a pé a Fátima, feito alguns trilhos em viagens em Portugal e lá fora. Em todo o percurso, nunca tive de recorrer à bomba da asma. Bendita Yoga. Proteção divina. Bons ténis de caminhada e barras energéticas.
Desta etapa guardo um bosque imenso, conhecido como «A Ribeira» com árvores contorcionistas, como nunca havia avistado antes. Era como se fizessem a ponte no ar e o tronco e ramos quisessem regressar às raízes. Seriam árvores com medo de voar? Não me parece, eram árvores temerárias, pois o seu conjunto formava um espetáculo belíssimo e apaziguador. E castanheiros. A chegada do outono enchera o trilho dos seus ouriços, que bonito é refletir que dos espinhos nasce fruto que tanto calor e aconchego nos oferece. E que a minha impressão digital é igual aos veios de um tronco de árvore. Somos mesmo «árvores andantes», como conta um amigo sábio. Guardo, desta viagem, os frutos que colhemos diretamente das árvores e nos permitiram um boost a meio do percurso. A gratidão que senti por estar ali a viver aqueles momentos. Não vimos nenhum peregrino, o que, de certa forma, nos entristecia porque gostamos de conversar e conhecer singularidades das histórias do outro. O cenário era só nosso, mas podia saber-nos a mais. «Seria que íamos percorrer a mais de centena de quilómetros “apenas” na companhia uma da outra?»
A chegar a O Porriño – não me lembro que horas eram, apenas que andámos devagar e a desfrutar da magia dos inícios – tivemos uma réstia de esperança. Avistámos uma peregrina a perseguir o sentido oposto e lá metemos conversa. Acho que ela até se assustou com a nossa voracidade. Foi uma troca de palavras rápida, ia a caminho de Fátima, a acampar durante o percurso, e também ficou feliz de nos encontrar. A pandemia havia subtraído peregrinos ao caminho.
No Porriño, vila moderna sem a história e a graça de Tuy, alojámo-nos no Hotel «Internacional», de duas estrelas e nome pomposo para as alcatifas gastas e o mofo instalado. O rececionista tardou a aparecer, nós esbaforidas do arranque, e redimiu-se com a simpatia característica do povo galego. Jantámos num restaurante anódino e, antes de nos deitar, invadidas por dores no corpo, instituímos, depois do duche revigorante, um ritual que havia de mitigar bolhas e cansaço: uma profunda hidratação dos pés. Eis outro segredo para um caminho tranquilo: o cuidado com o nosso suporte. Este foi o meu maior luxo, também uma necessidade: um bom creme de pés. Tombámos na cama e, quando o despertador anunciou as 8h00, bastou uma pancada seca para o silenciar. Atordoadas, não queríamos acreditar no peso do corpo, nas dores que nos trespassavam (com exceção dos pés!), no sono que nos retardava. Umas horas mais tarde, a realidade veio à tona: era tempo de percorrer mais 16 quilómetros, até Redondela.
A saída de O Porriño foi o que mais me custou, com a sua autovia acelerada, o cinzento do asfalto ladeado por dezenas de oficinas de automóveis sombrias, o passo medroso e pouco estugado. Não foi no final das etapas onde já éramos pernas com corpo, e não corpo com pernas, que conheci maior esforço.
Quando avistámos caminho de terra, em espaço aberto, erguemos os braços e demos graças ao céu. Também esta etapa se encontra pejada de pontes e capelas de pedra (muitas fechadas) e um bosque, embora nos oferecesse menos asas (ou raízes) à imaginação. A meio caminho, parámos para fazer uns alongamentos que nos mitigassem as mazelas do arranque e eis quando passa um rapaz por nós a passo veloz, aproximadamente da nossa idade e bem parecido, e se nos dirige um «buenos días». Ficámos encabuladas nas nossas posturas e respondemos mornamente ao cumprimento. Ainda fizemos tenções de o apanhar mas, com aquela passada larga, tal seria tarefa hercúlea. O que não contávamos (ou talvez sim!) era que ele abrandasse cerca de 300 metros adiante, também a alongar apoiado num sinal de trânsito. Dirigimo-nos um olhar em simultâneo que gritava «olha, está por certo à nossa espera!» E assim era, apesar de não nos ter confessado. Era português, estava com um ar fresco como uma alface, e tinha partido nesse dia de Tuy. De Tuy! Ou seja, já ia com 30 quilómetros em cima, significando que tinha acordado ao nascer do sol e estava a fazer um 2 em 1. Não tivemos coragem de nos queixar, apenas de dizer que planeámos percorrer uma média de 16 quilómetros, por dia, ou seja, menos de metade. Contou-nos que já era um habitué do caminho, que era o seu maior remédio para descomprimir da azáfama do dia a dia. E que azáfama era a dele, pensámos, ao partilhar connosco que é médico de saúde pública e desde março, à conta da pandemia, multiplicava-se em horas extraordinárias de serviço. Havia conseguido uns dias de folga e ia renovar-se no retemperador caminho.
Quando nos perguntou onde nos alojávamos e lhe dissemos «em todo o lugar, menos em albergues», olhou para nós como se de extraterrestres nos tratássemos, e deu uma gargalhada. «Mas não percebem que é esta a melhor altura para ficar em albergues? Estão vazios! Ainda hoje era só eu no de Tuy!» Sentimo-nos umas mimadas: não bastava acordarmos a meio da manhã, percorrer metade do que ele fazia, e ainda pernoitávamos em hotéis?. Havia reservado tudo através da plataforma Booking, pelo que apenas foi possível cancelar, sem custos, a partir de Villanova de Arousa, ou seja, na antepenúltima etapa. As três noites seguintes teriam de ser ainda «à rica».
Acabou por partilhar connosco o apartotel kitsch, em Redondela. A conversa acrescentava valor e deveria ser otimizada.

Vou voltar umas horas atrás ao almoço, que foi convivido a três numa esplanada ao sol, de mesas e cadeiras de ferro e ambiente tão familiar que a dona nos foi apresentar a adega caseira onde produzia o seu Alvarinho. Digamos que não foi o melhor que bebemos no caminho, mas o único ao qual conhecíamos a origem. O jantar foi num restaurante sugerido pelo nosso novo amigo e só me recordo dos brindes com Estrella! Mas foi curto este caminho partilhado, pois que no regresso ao apartotel, uma surpresa inesperada: um telefonema a dizer que Portugal havia passado de estado de calamidade para emergência, pelo que o dever de médico obrigava-o a regressar no dia seguinte. Fiquei maravilhada com sua reação, não de resignação ou desilusão, mas de autêntico sentido de missão. Não se queixou, não se mostrou dececionado (apesar de ser impossível não estar, pelo menos de não percorrer mais camino na nossa companhia :- ), apenas nos disse que esta era a vida que tinha escolhido e como tal, teria de (alegremente) voltar e dar o seu melhor por tempos menos conturbados. Ficámos na conversa pela noite dentro, não antes de hidratarmos os pés e nos regozijarmos por sentir muito menos dores na carapaça, a partilhar, cá está, as singularidades da história de cada um. Dissemos-lhe que o levávamos no caminho, trocámos contactos, e na manhã seguinte, depois do pequeno-almoço, regressou ao labor.
Metemo-nos a caminho de Pontevedra, a «cidade que dá de beber a quem passa» conforme ditado galego, naquela que era, para nós, a quarta etapa do caminho, mais 18 quilómetros de introspeção e emoção, desta vez sem nos cruzarmos com alguém. Aliás, minto, neste troço, a certa altura começou a chover e parou um carro da polícia à nossa beira, com os agentes a perguntar se precisávamos de alguma coisa. Eu, na confusão do oleado, da mochila desengonçada, só pensava «ai, ainda me multam por estar sem máscara!» e nem virei a cara. Ou só virei quando encontrei o pano num bolso, amassado pelas camadas de roupa e pelo «tira-põe» permanente. Lá atravessámos rios, pontes romanas, outro bosque «abraçador» e quase na cidade, uma capela minúscula que tivemos de visitar e onde agradecemos as bênçãos até então, a Capela de Santa Marta. Ficámos no «Hotel Room», de duas estrelas, do qual não guardo a menor recordação. Apenas que, ao fazer o check-in, me apercebi de que já não tinha o cartão do cidadão. Liguei para o apartotel em Redondela e não o haviam encontrado. Era continuar sem ele, e rezar para que a carta de condução me bastasse. Bastou. E claro que a dois quilómetros de Pontevedra, e para fugir à chuva, entrámos numa bodega, digamos bastante rústica, e pedimos o vinho tinto que estava a ser servido, num jarro, na outra mesa. Só homens, claro! Ao aperceberem-se do nosso pedido, os compadres esboçaram um sorriso. O nosso sorriso desvaneceu-se quando provámos o vinho. Era intragável e o que valeu foi a tapa de pimentos…com alguma coisa. Pelo que, sem cerimónias nenhumas (era por certo da adega ultra-caseira), pedimos meia garrafa, jogando pelo seguro. Ao que os nossos amigos, com a maior das piadas retorquiram: «agora somos nós que queremos o que elas estão a beber»! Em bom tom, declamámos a nossa máxima da viagem, com um acrescento: “sin bueno bom vino, no hay caminho”.