«Obrigada por nos visitarem e ajudarem o povo malgaxe.»
Ouvi esta frase várias vezes com um vigor e um sentido de gratidão que me intrigaram. Até perceber, pelas estradas nacionais de terra batida, e com a paciência levada ao limite pelas horas infindas a percorrer ínfimas distâncias, que este destino – imperdível para entusiastas da vida selvagem – é hoje um paraíso esquecido.
Madagáscar é a quarta maior ilha do mundo; sabiam?
No ranking das Nações Unidas, é também o quarto país mais vulnerável às alterações climáticas, com o World Food Program a advertir que a situação no sul poderá tornar-se na primeira crise de fome de sempre causada pelo aquecimento global. Viram nas notícias?
É que até o primeiro navegador a atracar no país era português de seu nome Diogo Dias (e sim, irmão do Bartolomeu que muito provavelmente lhe deu umas dicas sobre como dobrar o Cabo da Boa Esperança). Deram isto na escola?
Nesta linha das deslocações audazes, valeu-nos a (bio)diversidade de uma paisagem com montanhas, vales e desfiladeiros a sucederem savanas espinhosas, florestas tropicais, parques naturais, praias-postal; pelo meio, formações geológicas exclusivas, terraços de arroz infinitos, povoações com nomes de rios que fornecem alento e sustento. E valeu-nos, claro, o bom presságio de um condutor chamado Ando, com a sua tranquilidade, resistência e val(i)orosa destreza no contorno de obstáculos continuados.
A pouco e pouco, o desconforto deu lugar ao arrebatamento, à rendição, à curiosidade. Aí começou a (auto)descoberta.

Visitei o país em Outubro numa viagem de três semanas desenhada pelo líder Bernardo Conde, na altura ainda pela agência Nomad. Mais do que o consolo sazonal das praias-postal – aonde fomos um dia! -, esta é uma viagem que privilegia o conhecimento do país real e o contacto com as populações. Demorei tempo a escrever este texto porque emocionava-me cada vez que o iniciava. Recordando o encanto e a grandeza humana que lá encontrei, tão desmerecedora da dureza do dia-a-dia acentuada por uma pobreza endémica, esmorecia. Acabou por ser uma viagem memorável que prescrevo a todos os adeptos da humanidade, amantes da natureza, apologistas da aprendizagem.
Confesso que não fui eu que escolhi o destino; nem sequer foi amor à primeira vista. Sabia que África integrava uma ilha gigantesca na costa sudeste, desgarrada de Moçambique que era, nada mais, nada menos, do que um país do tamanho de França, tão grandioso quanto invisível, de seu nome Madagáscar. Na minha ignorância e desconhecimento, esta era uma ilha de florestas tropicais, habitada por muitos lémures e poucas gentes (quando são 28 milhões!), e havia sido «legitimada» no planisfério pelo blockbuster de animação homónimo.
Filme esse em que os protagonistas são um leão, uma zebra, uma girafa e um hipopótamo, animais inexistentes num território onde 90 % das espécies são tão endémicas quanto a pobreza. Em que até o chefe dos lémures – esse símbolo glorioso do país – se apresenta macho, quando são as fêmeas que lideram os grupos. Neste reino de olhares redondos e arregalados, como se andassem surpreendidos pela próxima existência (infelizmente, a maioria está em risco de extinção), quem manda são elas. Ter uma rainha Juliana a dirigir o «I like to move it, move it!» retrataria melhor a realidade destes mamíferos – mesmo que tivesse o QI do rei Juliano! Acresce que a floresta tropical se tornou paisagem diminuta num extenso território apelidado hoje de «terra vermelha». Mas este é um filme de animação, no grafismo e também na intenção, pelo que algum desfasamento da realidade é admitido e até recomendável (só não cedo na rainha Juliana e nos outros dois lémures principais – todos machos!). Lembro-me de rir que nem uma perdida e reconheço o mérito de esta produção ter posto Madagáscar nas bocas no mundo. E para alguns, com pompa e circunstância, no próprio mapa-múndi.
A diversidade de Madagáscar começa logo pelas suas 18 etnias, de olhares mais ou menos rasgados, com os seus costumes singulares, espelhando os primórdios de uma ilha que nasceu do descolamento de África e da primeira colonização em massa, feita por indonésios. Aliás, a língua mais próxima do malgaxe – oficial em conjunto com o francês –, é falada no interior do Bornéu, a 10 mil quilómetros de distância.


Dividindo o país grosseiramente em três faixas na horizontal, a nossa viagem deu-se pelo caminho do meio. Buda ficaria feliz. As praias-postal situam-se principalmente no norte e o sul encontra-se devastado pela seca que se prolonga há cinco anos. Chegámos a vivenciar o contraste em 250 milhas e 12 horas (!) entre a costa oeste, seca e árida, da imponência dos baobás (embondeiros) desnudos na proximidade do canal de Moçambique, e a costa este, húmida e quente, das palmeiras e afins ao largo do oceano Índico. Um percurso camaleónico como que a homenagear a abundância destas espécies no território.
Mas que exclusivos são estes que acontecem SÓ EM MADAGÁSCAR, para o bom e o menos bom, que o torna num destino-aprendizagem de onde não regressamos os mesmos – ou mais próximos de quem realmente somos?
Antes de mais, uma garrafa de plástico. Nunca mais olhei da mesma forma para uma garrafa de plástico. São um bem precioso em Madagáscar. Aonde quer que passássemos, crianças e mulheres pediam-nos as que íamos consumindo – privilegiados que somos de poder beber sempre água potável – para usar como recipientes, armazenar líquidos, transformar em outros objetos (desde materiais de construção a brinquedos), revender em mercados locais.
O valor comercial de uma garrafa vazia revela muito sobre o país e o que a população (não) tem. Revela, sobretudo, o engenho e a arte de um povo; esse espírito inventivo que decorre da necessidade extrema, a desenvoltura com que transforma resíduos em utilidades. Infelizmente, nem todo o engenho é canalizado para ações que não danifiquem o ambiente. Num país com graves atrasos de desenvolvimento, geograficamente à mercê das intempéries, o equilíbrio entre a presença humana e a proteção da natureza é cada vez mais ténue.
Em busca da sobrevivência, as populações começaram a desflorestar o país para produzir o carvão que alimenta os fogareiros das cozinhas, plantar arroz, criar gado. Lembro-me de ficar muito zangada quando numa caminhada na montanha assistimos, impotentes, a sucessivas queimadas. Estugaram-nos o passo, e, sobretudo, entristeceram pelo estrago irreversível na flora (e fauna) envolvente. Com distancia(mento) – confesso que já em Portugal – pus-me a refletir: posso ficar furiosa com a «conivência» de altos funcionários públicos e seus compinchas no contrabando de madeiras raras, como o pau-rosa para a China. Mas quem sou eu para me revoltar com quem só quer alimentar os filhos no dia seguinte e não tem, como nós, hipótese de pensar a médio e longo prazo?
Apenas 10% das florestas subsistem e resistem em Madagáscar; a maior parte em Parques Naturais e Reservas protegidas. Intocáveis, portanto, pelo menos por mão humana. Como a Reserva de Anja, gerida eficazmente por uma associação local, onde, na última semana concretizámos a ambição-mor da viagem: travar conhecimento com os famosos lémures de cauda-anelada, vulgo rei (rainha!) Juliano e suas crias e tropelias. Sítios únicos que nos mostram como a integração, e não a competição, entre as comunidades e demais seres vivos é possível, sustentável e indispensável à própria vida. Bastaria promover o país como destino imperdível – porque o é – junto dos entusiastas do mundo selvagem, melhorar os acessos, criar oportunidades de emprego, formar as populações enquanto guias ou conservadores das espécies, fazer reverter o lucro para o desenvolvimento das comunidades circundantes.

de Carolina Martins

de Bemaraha, de Carolina Martins
No rol de experiências em cenários apenas disponíveis em Madagáscar, o pódio vai para a via ferrata do Parque Nacional Tsingy de Bemaraha, a «floresta de pedra» que desperta o Avatar em nós. Apesar do medo – padeço de «alturofobia» –, senti-me invencível de arnês e mosquetão em riste a escalar aquela imensidão de rochas verticais pontiagudas, semelhantes a pináculos de catedrais góticas. Esculpidos há milhões de anos pela erosão das águas do mar, ventos e chuvas, os tsingy ladeiam bolsas, infelizmente cada vez mais reduzidas, de florestas, onde havíamos avistado lémures pela primeira vez. Esta espécie – os Sifaka – revestia pelo branco sobre pele escura e olhos amarelos arregalados, pareciam lobos disfarçados de ovelhas!, e alternavam entre as árvores resistentes e os tsingy para os seus banhos de sol matinais.


Paradoxalmente, a chegada ao parque foi dos percursos mais puxados da viagem, com os últimos 20 quilómetros a demorarem 2 horas e necessariamente num 4X4. É inaceitável que assim seja num parque que é Património Mundial da Unesco desde 1990 (!), prova de que, ali, o retorno às comunidades vizinhas é claramente insuficiente. O local é tão impressionante que Obama dedicou-lhe uma parte do primeiro episódio de «Our Great National Parks», da Netflix; espero que a visita do ex-Presidente norte-americano tenha sido realizada em ano de eleições malgaxes.
Foi também um veículo 4X4, solavancos vários e um piso desfeito que nos levaram ao pôr do sol mais retratado de Madagáscar: na Avenida dos Baobás. Foi aqui que encontrei mais viajantes intrépidos, decididos a contemplar o fogo do anoitecer sobre estas imensas árvores sagradas. De galhos despidos e retorcidos a lembrar raízes, «na terra, tal como no céu», imperturbáveis pelos ventos, os baobás são fortalezas que espelham a ligação ao divino. A sua vida pode chegar aos seis mil anos. Existe até um provérbio local que assevera que «a Sabedoria é como o tronco do embondeiro. Uma só pessoa não o consegue abarcar».


Neste capítulo das árvores sensatas, há uma que nos acena e tem o sugestivo nome de árvore-do-viajante. Há quem veja nela uma mão, um leque, um conjunto de pagaias. Assemelha-se a uma palmeira espalmada, os seus ramos organizados em duas fiadas opostas, mas pertence ao clã das estrelícias. O seu nome popular remete à história de viajantes do passado que se serviam das folhagens para construir abrigo e da água acumulada para matar a sede.
Da riqueza natural para os costumes, conto-vos uma vivência insólita logo no segundo dia. Mergulhámos de chofre na cultura local, passando com distinção no teste de adaptação a uma realidade (aparentemente) kafkiana, ao assistir a um «Famadihana»: o ritual de celebração dos mortos, praticado pelas etnias Merina e Betsileo que significa literalmente «virar dos corpos». A cada sete anos após a perda de um familiar, abre-se o jazigo e retiram-se os mortos em ombros para conviverem com os vivos e serem envoltos em novos panos imaculados. Mais do que uma cerimónia, é uma festa com direito a uma banda descompassada, bebida com fartura e muita dança. Mesmo sobre o jazigo, como sucedeu a uma companheira de viagem animadamente arrastada para o topo. Se as famílias com maiores possibilidades não o fizerem, pode recair sobre elas «Fadi» ou má sorte/tabu, e os malagasys são «supersticiosos.» Estas manifestações recordam-nos o culto da ancestralidade, apaziguam-nos com a morte, ligam-nos ao espírito que é infinitude.

A Igreja cristã aprendeu a coexistir e a aceitar estes rituais menos ortodoxos. Uma grande fatia da população (não sei ao certo, os números variam entre os 40 e os 83%) é cristã e, simultaneamente, tem crenças animistas. Era habitual vermos igrejas pelo caminho – algumas bem imponentes, como a Notre Dame de Madagascar, também em Antsirabe, local onde assistimos ao «Famadihana». Aliás, Madagáscar tem o culto de Nossa Senhora; apenas na sua capital, em Antenanarivo, vi uma da dimensão dos budas dourados asiáticos. Avistavam-se missionários pelas ruas, e assumo-me uma feroz defensora – e testemunha – do seu trabalho abnegado por terras africanas.
Outra experiência marcante foi a pernoita na aldeia de Sakaivo, situada num vale a 1300 metros de altitude e aonde só é possível chegar a pé, com o vilarejo mais próximo a distar quatro horas de passada firme. Ao dobrar a última encosta, avistámos (imp)ávidos, sob a bruma da montanha, a beleza e simplicidade das casas erguidas em madeira trabalhada, e a sua disposição harmoniosa. Recebemos luz verde do chefe da aldeia e introduzimo-nos naquele local, tão remoto quanto improvável, a admirar a notável arte de esculpir madeira dos Zafimaniry. A receber-nos efusivamente estava o Stanislau, um surdo que logo aclarou a sua condição num pedaço de papel, e nos mostrou com orgulho a sua obra: banquinhos, bases e demais artefactos, talhados minuciosamente em padrões e símbolos simétricos. Ficámos a saber que o seu ofício havia sido adicionado à lista de património cultural imaterial da UNESCO e que as casas, com os seus beirais, janelas e varandins coloridos, eram construídas sem recurso a um único prego ou ferragem metálica. Nessa noite, vivemos um dos momentos mais divertidos da viagem em volta de uma garrafa de rum caseira a jogar o «vrummm, ihhhh, ploft», não sem antes o nosso anfitrião nos premiar com um ritual da cultura local: deslocar-se de copo na mão ao canto auspicioso da casa – nordeste – para fazer um brinde com os ancestrais que assim abençoavam a nossa presença na aldeia. Na manhã seguinte, para sairmos da aldeia voltámos a empreender uma caminhada de quatro horas na montanha por outro trilho, esta até mais sofrida – mas tremendamente gratificante – acompanhados pelos nossos novos amigos, quase todos de chinelos ou, mesmo, descalços.



Em Madagáscar, senti-me permanentemente dentro de um abraço. Por isso, apesar de ir descortinando, deixo o melhor para o final: as pessoas. O que dizer das pessoas?
O acolhimento, a candura, a alegria à passagem em cada aldeia enterneciam-nos a alma. Apesar da dificuldade, este povo pratica «Fihavanana», palavra malagasy sem tradução (como a nossa Saudade) que significa «espírito solidário, gentileza gera gentileza». Numa das margens do rio Manandona, uma associação de mães-tecelãs empreendia um projeto comunitário de sedas naturais para que outras crianças pudessem, também, frequentar a escola. Este é só um exemplo.
As crianças acenavam-nos, com os seus sorrisos e olhos escancarados, aquela curiosidade sagaz dos mais pequenos. Corriam atrás da carrinha a gritar «bonbom, bonbom, vahaza!», muitas descalças e de vestes rasgadas (vahaza=estrangeiro). Mesmo se não tivéssemos – doces evitávamos dar –, alinhavam na brincadeira connosco. Eram alegria na simples presença do outro, viam mundo numa canção, num caderno escolar, numa bola de sabão. Uma vivacidade que nos comove, questiona, bipolariza emoções, arrebata. Recordo um momento da viagem em que o guia ofereceu umas calças apalavradas a um miúdo que se emocionou de contentamento ao segurar o seu novo tesouro. Tal como nós. Como tão bem diz uma querida amiga, «generosidade é dar, respeitando a dignidade de quem recebe».
Na descida do rio Tsiribihina, logo nos primeiros dias da viagem, fomos atracando nas margens de algumas aldeias isoladas. Ainda não tínhamos desembarcado, já um coro de meio metro de voz bradava «Bêrnardô!» e marcava cada um de nós como o escolhido para nos levar pela mão. Foi comovente ver que o «Bêrnardô» sabia os nomes de muitos miúdos e cumpria o asseverado na viagem anterior. Neste caso, a entrega de cadernos escolares à escola local, uma sala insalubre com um quadro de ardósia e uma mesa, onde dezenas de crianças se sentavam num chão de cimento e, animadamente, nos presentearam com algumas canções. Também nós lhes ensinámos algumas músicas, com mímica à mistura, e comungámos da pureza dos mais novos. Viajar é sobretudo isto: partilha. E nisto – e em tanto mais – o grupo foi exímio.

Saí da dita escola de lágrima no olho, numa catadupa de sentimentos a oscilar entre a angústia e a completude. Numa outra aldeia à beira do Tsiribihina onde pernoitámos a tocar as estrelas, fomos contemplados com o som hipnótico dos batuques e danças improvisadas em redor da fogueira, rodopiada por crianças e adolescentes talentosos. Muitos dos quais viviam apenas com as mães, avós, tias: à falta de alternativas de lazer e de educação sexual, muitas jovens engravidavam e outros tantos debandavam.
Foi no tão ansiado dia de praia na costa oriental de Madagáscar, em Manakara, que vivemos uma das experiências mais bonitas da viagem. Um grupo de crianças na casa dos 6-8 anos, alguns – poucos – mais velhos, abordou-nos na venda de umas pirogas em madeira, acompanhando-nos ao longo do extenso areal. Quando parámos para mergulhar, os mais afoitos seguiram-nos. A nosso lado, desafiavam ondas e exibiam piruetas. Duvido que soubessem nadar, por isso, estávamos vigilantes. Na margem, dois deles observavam a cena de semblante carregado, numa quietude sofrida. Não se atreviam – e bem – a entrar no mar, transparecendo, no peso de uma bandeja quase do seu tamanho, a exigência de uma desenvoltura precoce. Aos que permaneciam na areia, iam dirigindo o olhar a apontar timidamente para as pirogas. Num rasgo, lembrei-me que levava um caderno de pintar e canetas na mochila, estendi um pano e chamei-os. Quando puseram os olhos no «atelier» improvisado, o rosto dos pequenos iluminou-se, os sorrisos finalmente se e(n)levaram. Esqueceram-se das pirogas e seguraram, como se de uma fortuna se tratasse, na folha e caneta que lhes calhou. Foi como se, ali, a poderem ser crianças, ganhassem vida. Também os outros saíram da água num ápice para se juntarem a nós. Num feliz acaso – que creio não ser – tinha desenhos e canetas à conta e foi enternecedor vê-los a esperar a vez, agradecer e aceitar sem disputas a figura e a cor que coube a cada um. Numa lição de valor(es), foram revezando as canetas sem atropelos ou alarido. No final, assinaram os desenhos – o que nos confortou, sinal de que frequentavam a escola –, e exibiram-nos de orgulho estampado.


Nos cerca de 3000 quilómetros de “estrada”, era incomum ver malgaxes encostados. Multiplicavam-se desde cedo na labuta, a lavrar arrozais à pá, nos arados de zebu (vacas de uma bossa detidas pelos mais abonados), nos pousse-pousses coloridos (riquexós, alguns deles locomovidos apenas a força humana!), nos hotelys (cafés) e mercados, em bancas de roupa em segunda mão. Bancas, ironia das ironias, de fast-fashion vendida por atacado a intermediários, que a revendem muitas vezes a preços superiores ao custo de produção, …e que é manufaturada nestes mesmos países subdesenvolvidos (!), perpetuando o círculo de pobreza e matando a indústria têxtil local.




Sempre em movimento, viviam, de sol a sol, na lavoura, pastoreio, pesca, garimpo, mineração, sem ferramentas adequadas ou equipamento de proteção. Artesãos que esculpem e embutem madeira com serras criadas a partir de arames das telas dos pneus. Crianças minúsculas a cortar lenha à catanada, a carregar fardos de carvão, a tapar buracos na estrada, algumas de não mais de 4/5 anos, por vezes com bebés nas costas…
O país real é profuso nos seus cenários, esculpidos pela violência da separação da “terra-mãe”, escamoteados por fenómenos climáticos extremos, revolvidos pela absoluta necessidade de sobrevivência de um povo na demanda por terra fértil. Um país sem estradas decentes para quem lá habita e comuta, dificultando – quando não impede – o acesso a cuidados básicos de saúde, a escolas, a distribuição de bens essenciais; que desencoraja (tão injustamente) quem o visita. 2023 é ano de eleições presidenciais, pelo que se espera uma melhoria das rodovias. Pelo menos, o Presidente Andry Rajoelina já conseguiu fazer chegar a locais recônditos, como assistimos nas indumentárias envergadas, t-shirts da campanha com a sua cara. Os produtos de primeira necessidade podem até não ser distribuídos; mas os votos, esses, têm de ser angariados. É que nem a principal ferrovia do país, motor económico das 17 aldeias circundantes, estava em funcionamento já que os seus trabalhadores não recebiam há largos meses.

Nunca percebi esta discrepância entre a gentileza desarmante das populações africanas e a ganância de quem as governa. Madagáscar é abundante em pedras preciosas e semipreciosas, ouro, baunilha, arroz, mandioca, peixe, mas muito pouco chega às pessoas. Um país que padece da chamada “maldição dos recursos”, esse paradoxo que leva países abundantes em recursos naturais a registar um menor desenvolvimento e crescimento económico que os restantes. Prevalece a exploração, o neocolonialismo por via de empresas transnacionais, a corrupção das elites instaladas. A larga maioria dos malgaxes vive com menos de 2 dólares por dia, vê o prato composto por pouco mais do que arroz, sem água potável ou saneamento básico.
O governo alega que a crise climática é responsável pelo agravamento da pobreza em Madagáscar, e que o Ocidente não levou a sério as consequências das suas ações (Baomiavotse Vahinala Raharinirina, ex-Ministra do Ambiente, na COP 26, em Glasgow). A acrescer à crise de 2020-2022, causada pelos efeitos nefastos da pandemia. É verdade que Madagáscar assistiu, no início de 2021, e em menos de um mês, a quatro tempestades tropicais a fustigarem o território, fenómeno raro mesmo durante a temporada de tufões no Oceano Índico. É verdade que as alterações intensificaram a seca devastadora que se prolonga há cinco anos no sul do país e que levou um milhão de pessoas ao nível de fome aguda, de acordo com o relatório divulgado em Outubro de 2021 pela Amnistia Internacional. É verdade que, VERGONHOSAMENTE, África paga o grosso da fatura do aquecimento global, sendo o continente que menos contribui para as emissões de carbono (cerca de 4 %).
As alterações climáticas e a displicência dos países ricos a mitigá-las contribuíram, sim, para a situação atual de Madagáscar. Mas o clima não deve ser o bode expiatório de uma nação agora mais pobre do que na independência em 1960. O fracasso das políticas governamentais (um governo com 30 ministros) e a ausência de reformas de longo alcance – como o apoio ao investimento privado e criação de emprego (por exemplo, nas zonas de maior potencial turístico), o acesso a serviços e infraestruturas básicas (como vias de circulação), o impulso à produção interna de alimentos, a promoção enquanto destino exclusivo de biodiversidade, o aumento da transparência e responsabilização do sector público, o reforço da resiliência a choques – tem feito o país ficar para trás. Segundo o World Bank, as projeções económicas refletem uma taxa de pobreza que permanecerá perto de 80% até 2024, quase duas vezes a média dos países da África Subsariana ($2,15/capita/dia), e superior aos anos pré-crise. Serão necessários cerca de dez anos de crescimento ininterrupto para reverter a perda de rendimentos médios que ocorreu em 2020-22; e 73 anos para atingir o nível de vida atual no Ruanda, o par mais próximo das aspirações de Madagáscar.
Na COP 27, onde os grandes decisores se encontraram uma vez mais para tomar novas medidas que assegurem o Acordo de Paris, e para onde se deslocaram, pasme-se 400 jatos privados (!), o Presidente Rajoelina fala em tornar Madagáscar um país líder em carbono azul. É a nação africana com a maior linha de costa, onde a biodiversidade abunda, também (ainda), no oceano. Tem parceiros internacionais a cooperar para este objetivo e acredito que, com empenho, dedicação e seriedade, tal seria possível. Mas o estadista teria de deixar de parte projetos de vaidade como a construção de estádios de futebol colossais, como o que vimos em Antananarivo, e voltar-se para as reais necessidades das populações.
Ainda bem que a dignidade, mais do que da estrutura e da oportunidade, irrompe da bondade e da coragem perante a adversidade. O povo malgaxe é como as árvores que o habitam: vive e morre de pé. Como sublinha o cardeal Tolentino, “África dá-nos a dimensão da vastidão”; e tão bem acrescenta o Bernardo, no que toca a Madagáscar, “sobretudo, humana”.
Nota pós-escrito 1: Recebi a notícia de que um ciclone tropical alcançou o norte e centro de Madagáscar na terça-feira, 21/02/22. A tempestade iniciada no Īndico perdeu velocidade ao aproximar-se de terra, destruindo, mesmo assim, uma boa parte dos arrozais;
2. Encontram agora o Bernardo Conde e as suas viagens de (enorme) descoberta e aprendizagem no seu novo projeto Trilhos da Terra.

