PARTE IV – Singularidade das histórias do caminho e um brinde ao mexilhão
Texto de Mariana Beleza Tavares. Fotorreportagem de Marta Gonzaga.
[Parte I – Tudo começa por um primeiro passo, de preferência português!]
[Parte II – Sin tapas tampoco]
[Parte III – Pedras no caminho e o mí(s)tico Avatar]
De Ribadumia a Vilanova de Arousa
Seriam 17 quilómetros entusiasmantes de Ribadumia a Vilanova de Arousa, na expetativa de, no dia seguinte, cruzarmos o estuário de barco até próximo de Padrón, numa réplica da travessia do apóstolo Santiago, apelidada de la Translatio. É que até o contacto que tínhamos da Barca do Peregrino se chamava Santiago. Já havia faltado muito mais e a verdade é que as pernas apresentavam uma leveza aparentemente incongruente com o esforço físico que estávamos a despender.
Passados três, quatro quilómetros debaixo de um calor incomum, decidimos parar num café de uma povoação para nos refrescarmos e trocarmos as calças por calções. A Marta foi mais expedita que eu e já estava lá fora, na palheta com um senhor consideravelmente mais velho. Não fiz grande conversa – uma voz interior disse-me para não dar confiança – a Marta trocou números de telemóvel com o senhor que, segundo lhe contou, era cardiologista com consultório no centro de Compostela. Disse-lhe para lhe ligar quando chegasse a Vilanova de Arousa, que nos levaria em passeio para vermos as Ilhas Cíes e Cambados, conhecida como capital do Alvarinho. Confesso que me cheirou a esturro, mas depois refleti na generosidade permanente com que o caminho nos presenteava, e amainei. Afinal éramos duas e estávamos em mais forma que nunca!
Continuámos e um pouco à frente deparámos com uma bonita surpresa que o caminho nos reservou: uma peregrina argentina, em passo estugado. Tinha mais dez anos que nós e decidimos acompanhar e conhecer mais uma história que se avizinhava surpreendente. Mãe de três filhos, era produtora de tomate em Mendoza e decidiu deixar o negócio com os filhos para viver um grande amor, em Paris. Passado um mês, e de coração destroçado, decidiu caminhar. Caminhar até mais não para os passos lhe secarem as lágrimas e o vento sacudir o imenso vazio que lhe preenchia a alma. Assentou completar o Caminho Francês de Santiago, com partida da localidade fronteiriça de Saint-Jean-Pied-de-Port , e uma exigência de quase 800 quilómetros, e, consecutivamente, ainda a precisar de descomprimir sentimentos, o Caminho Português Central com início em Lisboa. E outros 625 quilómetros. Apanhámos esta iron woman já no final do tremendo desafio a que se propôs. Ela que, tal como o outro peregrino com que nos nos cruzámos anteriormente, também caminhava uma média de 30/35 quilómetros por dia e pernoitava nos albergues. Encabuladas, engolimos em seco e chutámos as queixas para canto. Já só faltava o quase.
Livres das amarras do Booking, podíamos, finalmente, experimentar um albergue. O público estava fechado — como muitos no caminho, nestes tempos de «pandemónio» — e reservámos, durante o percurso, em trio, o albergue «A Corticela». O final desta penúltima etapa foi calcorreado debaixo de chuva intensa, e dança imensa, num paredão à beira da praia que adivinhava a proximidade do estuário do rio Arousa. Isto já depois da taça de vinho da praxe numa bodega em fins de caminho e de um almoço andante de bocadillos, fruta e barras, compradas numa qualquer aldeia intermédia. Chegadas à pequena vila piscatória, encontrámos o albergue, atestámos a máquina de lavar (uma bela amenity que nos libertou das lavagens em lavatório ou duche) e erguemos as pernas nos respetivos beliches. Não foi surpresa sermos as únicas hóspedes da D. Corticela, a jovem proprietária do seu homónimo albergue.

A primeira tarefa a desempenhar foi ligar para o Santiago, da Barca do Peregrino, a reservar lugares para a travessia de barco. Qual não foi o nosso espanto quando nos disse que, com grande probabilidade, não teria peregrinos suficientes no dia seguinte. E a barca ficaria em terra. Fizemos outros dois contactos. Esta era uma das grandes motivações desta variante: la translatio. Ficar em terra estava fora de questão, mas tivemos de nos contentar com uma resposta definitiva de madrugada. Seja o que Santiago – e o timoneiro Santiago – quiser.
De banho tomado, pés besuntados e pilhas recarregadas, recebemos o telefonema do tal Doutor, ao que a Marta retorque: «Não vou atender». E eu, depois de ter tecido críticas à aproximação da minha amiga ao desconhecido, decidi confiar no sentido de humanidade da maioria e afirmei: «Atende e diz que somos três». A Marta não atendeu, ao que parece faz isto algumas vezes, se fazem questão dá o seu número e depois não atende e se insistem, bloqueia. Acabei por ter de ser eu a atender e a confirmar o jantar.
Passou meia hora e lá estava à nossa espera a criatura com a correspondente viatura. Pareceu-me ver o semblante fechar-se quando deparou com o trio, mas preferi ignorar. Decerto, a minha perceção estaria condicionada pelo cansaço acumulado. «Vou mostrar-vos as Ilhas Ciés e Combados, a capital do Alvarinho.» Quando a estrada serpenteia por floresta cerrada, engulo em seco, e peço a proteção de Santiago. Rapidamente alcançamos a costa, onde debaixo de uma neblina crepuscular, se elevam as Ciés, ilhas de águas azuis transparentes, areia fina e branca e trilhos panorâmicos, que só podem ser visitadas com autorização da Xunta da Galicia. Saímos do carro para algumas fotografias à paisagem que abarcava a cultura do mexilhão feita em jangadas, tão típicas da Galiza, mas pouco comuns noutras regiões.
Ao cair da noite, direcionámos agulhas para Cambados, onde tínhamos acordado um jantar num restaurante de peixe e marisco, regado à frescura da casta da casa. Eis quando, após percorrermos algumas vielas ladeadas de paços e casas senhoriais, santuários do Alvarinho – quer museus, quer esplanadas outrora radiantes – o Doutor se lembra que tem uma videochamada daí a meia hora, tendo de regressar naquele exato momento. Aí apercebemo-nos que o interesse dele ia além de mostrar as maravilhas costeiras a umas peregrinas, e comentámos, depois da sua fuga, com um esgar de indignação, «como é que lhe passou pela cabeça que alguma de nós lhe desse trela?»

Senti-me desencantada na minha confiança no e num desconhecido e, depois de breve reflexão, satisfeita por nos encontrarmos numa vila pesqueira tão monumental que, de outra forma, não teríamos descoberto. Bem melhor assim. Pudemos desfrutar de uma refeição, de confidências, de um insight memoráveis. Entre lágrimas de alívio, e um renovado fôlego de vida, a nossa amiga deu por concluída a intrépida viagem. A desesperança havia capitulado em cada um dos 1500 quilómetros calcorreados. Emocionadas com a partilha, e sobretudo com a sua entrega ao desconhecido e competência de superação, também nós marejámos entre robalo, polbo à feira (galega), chocos, batatas fritas, tortilha, jámon, alvarinho, táxi para a «Corricela». Sentimo-nos bafejadas pela fortuna – e pela serendipidade. Estender-se-iam estas à travessia?
Deitámo-nos confiantes, acordámos relutantes. Nem barca, nem barcas. Todavia, Santiago garantiu-nos que, no dia seguinte, teria outras peregrinas e que faria a travessia. Instalou-se-nos a dúvida: esperaríamos um dia, naquela vila, sem graça maior, ou daríamos corda às sapatilhas para dormirmos em Padrón nessa mesma noite. Para a Speedy do grupo, estava fora de questão parar, continuaria a andar os derradeiros 35 quilómetros, seriam amendoins para si.
Ora, o duo destemido decidiu ficar e descobrir as maravilhas daquela terra, nomeadamente os bivalves. Estranhámos o dia sem estugar passo, mas conhecemos a agitada lota e usufruímos de uma experiência absolutamente singular: numa tasca, dominada por elementos do sexo masculino, degustámos os melhores mexilhões cozidos da nossa existência. Atrelados a Estrella. Ficámos tão agradecidas pela decisão a.k.a. manjar que terminámos o almoço a brindar com todos os convivas, em fraterna animação. Era também dia do aniversário da Maria, filha da Marta, a quem esta celebração se estendeu, mesmo à distância. A tarde foi passada a descansar, a ler, a alongar. Eis que o malfadado Doutor volta a ligar-nos. Número bloqueado e página virada.
Adormecemos rapidamente e, ao nascer da aurora, uma bofetada sem mão. Santiago a ligar. Mas não era o Santiago, e sim a mulher. «Perdón, mas o Santiago ontem sentiu-se mal e passou a noite no hospital. Não me resta alternativa senão dar-vos boleia até Padrón». Céus, é mesmo isto que nos estava destinado? Que faz sentido? La translatio, a verdadeira origem do Caminho, num Renault, quatro peregrinas e a mulher do barqueiro? Nem acreditámos que não íamos atravessar esta Via Cruzis marítima fluvial com os seus cruzeiros construídos na década de 60, em memória de Santiago Apóstolo e seus discípulos. Semblantes desiludidos. Conformadas, enviámos mensagem à nossa companheira a avisar do sucedido e que iríamos ao seu encontro no albergue. Ai, fé, a quanto obrigas!