Quando se fala da Escandinávia no geral e da Suécia em particular, o simples nome vem revestido de uma conotação quase mítica e que divide abruptamente as opiniões, ou não fosse esta a idade de opiniões preto e branco (fica para outra crónica o triste desaparecimento da arte de apreciar as nuances na vida).
Para os que se identificam ideologicamente à esquerda (se estas divisões ainda fazem sentido), a Suécia é a terra onde o Estado-providência atinge o seu zénite salvador: tudo é financiado e coberto pelo Estado, desde o berço da maternidade onde se nasce até ao enterro. Para esses, as virtudes incontestáveis da Suécia (um dos melhores níveis de vida, educacionais, científicos do mundo para não falar da igualdade dos sexos), advêm simplesmente de um Estado perfeito que todos deviam imitar. Para os que se situam à direita, todas essas conquistas da sociedade sueca são miragens, produto de um regime de impostos que asfixia a economia, num país que está a ser invadido por muçulmanos e que está tão mal ou pior que a Venezuela (segundo uma tirada recente e muito cómica por se levar tão a sério da Fox News).
A realidade sueca é, no entanto, diferente destas fantasias ideológicas e situa-se mais ao centro do que se pode pensar. É certo que a Suécia foi (juntamente com a Alemanha, e mais tarde a Inglaterra nos anos 40) um dos pioneiros mundiais do tão apregoado Estado-providência. Mas para se compreender o “modelo sueco” tem de se compreender que o Estado-providência sueco não é o único pilar que a diferencia (bem como a Escandinávia no geral) do resto do mundo.
Por um lado, os países nórdicos têm uma série de instituições sociais não-governamentais que estão unicamente adaptadas ao mundo moderno (a começar por uma tradição fortissíma de fundações e mutualidades). Em seguida são sociedades pequenas, homogéneas, com níveis muito altos de confiança, ética de trabalho e de participação cívica. Esta é uma sociedade em que, por exemplo, é mal visto contratarem-se empregadas de limpeza porque se acredita que cada pessoa deve ser responsável por manter a sua casa em condições, independentemente de quão ocupado(a) estiver profissionalmente. Note-se que essa homogeneidade também pode ser abafadora: a Suécia não é definitavemente um país de excentricidade individual como o Reino Unido.
Finalmente o que muitos cronistas se esquecem é que a Suécia sempre foi uma sociedade profundamente industrial, altamente especializada e competitiva no que produz. Ou seja não só tinha as condições políticas e sociais para manter um Estado forte mas tinha sobretudo as condições económicas. Não é por acaso que um país com uma população tão pequena se tornou numa verdadeira máquina de produzir empresas e marcas globais como a IKEA, H&M, Volvo, Ericsson, Electrolux, os ABBA (o grupo pop não-inglês que mais vendeu e vende no mundo), o Björn Borg, o design de Arne Jacobsen, Acne Studios, JLindbergh, o Scandinoir do “The Bridge” e uma panóplia de actores mundialmente famosos como os deliciosos Alicia Vikander e Alexander Skarsgäard, entre outros. No último índice de competitividade mundial do IMD, a Suécia aparece na sexta posição, bem à frente das maiores economias europeias.
Esta década acentuou ainda mais este debate sobre o modelo escandinavo. Enquanto os duplos choques do 11 de Setembro de 2001 (o ataque ao WTC em Nova Iorque) e do 15 de Setembro de 2008 (a falência do Lehman Brothers e a subsequente Grande Recessão) deixaram grande parte das economias ocidentais de rastos e só agora, ao fim destes anos todos, a emergir gradualmente, a Suécia passou largamente ao lado dos problemas económicos que afectaram os outros países. A taxa média de crescimento económico anual desde 2009 (3.2%) é mais elevada do que a taxa de crescimento pré-2008, a dívida pública em vez de subir baixou consistentemente (está em 40% do PIB, mais de um terço do valor português) e o desemprego nunca esteve tão baixo. Novamente tudo isto foi conseguido através dessa combinação única de um sector privado altamente competitivo e inovador e de um Estado eficiente (nao há austeridade na Suécia porque o Estado lá não chegou a 2008 completamentamente endividado). Os problemas para a Suécia comecaram curiosamente não do falhanço de modelo (como para a maior parte dos outros países) mas do seu sucesso.
Tradicionalmente um país acolhedor de imigração e asilados, essa tendência acelarou-se substancialmente desde 2009. O sucesso do modelo sueco funcionou como mel num mundo de abelhas desorientadas e empobrecidas. Em proporção à população a Suécia é o país da Europa que acolheu mais emigrantes e asilados nos últimos dez anos: só durante a crise dos refugiados de 2015 a Suécia deixou entrar 163,000 asilados. Esta entrada maciça alterou profundamente o que era uma sociedade etnicamente homogénea e transformou-a num espectro multi-racial: cidades como Gotenburgo e Estocolmo têm correntemente cerca de 20% da população de origem muçulmana.
Se acolher (com as suas creches, hospitais, casas fantásticas) foi fácil para o Estado sueco, o mesmo não foi para o passo seguinte: a integração na sociedade e na economia. Uma economia altamente especializada como a sueca tem pouco espaço para o tipo de emprego de entrada que estes asilados e imigrantes necessitam e muitos deles passam anos e anos em cursos de formação (dados pelo Estado claro) sem se empregarem. A ociosidade gera descontentamento: um país que era extraordinariamente pacífico começou apartir desta década a registar regularmente desacatos em bairros com quotas altas de imigrantes, sobretudo muçulmanos, e episódios de violações e violência (que aliás inspiraram e de que maneira o Scandinoir). Cidades que eram extraordinariamente pacíficas como Estocolmo, Gotemburgo e Malmo começaram a resgistar os piores níveis de criminalidade em 50 anos, precisamente em comunidades imigrantes.
De repente os suecos começaram a sentir algo novo numa sociedade tradicionalmente tão coesa e rica: insegurança. A coesão foi exactamente o slogan que manteve os sociais-democratas suecos no poder quase ininterruptamente desde 1945. O pragmatismo também ajudou: foram estes sociais-democratas (e mais tarde os democratas-cristãos) que reformaram profundamente o Estado sueco nos anos 90, liberalizando sectores inteiros como a educação, saúde, justiça. Essa coesão justifica porque a Suécia foi uma chegada tardia ao nacionalismo à la europeia. Os Democratas Suecos (a força de extrema-direita local) demoraram muito mais tempo que os seus homólogos de extrema-direita europeia a aparecerem na cena política e, apesar de terem visto o seu peso parlamentar duplicar em todas as eleições desde 2002, têm sido consistentemente marginalizados pelos partidos convencionais, o que pode também ser explicado pelas suas origens e pela relação ambivalente que mantiveram com neo-Nazis e outros extremistas de direita.
No entanto, os Democratas Suecos foram rápidos a reinvindicar a bandeira da oposição total à política aberta de asilo e imigração sueca, enquanto os partidos centrais do regime evitaram a todo o custo reconhecer que existe um problema social complexo. Nas semanas anteriores às eleições de domingo passado algumas sondagens indicavam mais de 25% nas intenções de voto na extrema- direita, o que significaria tornarem-se o segundo maior partido sueco. Foi neste contexto que, por toda a Europa, se chegou com grande nervosismo à noite de domingo. No entanto, em vez da esperada tragédia para o centro político sueco, os Democratas Suecos conseguiram 17.5% do voto, mais do que nas eleições de 2014, mas ainda só suficiente para um terceiro lugar. Os Sociais-Democratas ganharam 28.3% do voto, apenas menos 2.8% do que há quatro anos e a votação dos Moderados/Conservadores-Cristãos (cerca de 20%) foi também melhor do que se esperava. Em número de deputados os Sociais Democratas e os Conservadores-Cristãos ficaram exactamente empatados.
Se o resultado não foi catastrófico obriga porém a uma mudança considerável na política sueca, tradicionalmente dividida entre o bloco Social Democrata e o bloco Conservador-Cristão. Negociações para uma eventual coligação entre os dois blocos (algo nunca experimentado) começaram e podem demorar meses ou até falhar completamente, determinando novas eleições. O que é claro é que, tal como noutros países europeus (Holanda, Alemanha, França), a fragmentação política está a levar o centro-esquerda e o centro-direita a colaborarem sob pena de perderem para os populistas.
Para os Sociais Democratas suecos o receio em relação a uma “grande coligação” é que tenha o destino de outros países que tentaram essa solução: na Holanda em 2012 houve uma coligação idêntica para manter fora do poder os populistas do Freedom Party e nas eleições seguintes, em 2017, os socialistas holandeses ficaram reduzidos a apenas 6% do voto. Isto para não falar sequer no buraco em que os Sociais-Democratas alemães estão metidos, com os piores resultados em setenta anos e obrigados a uma coligação com o partido de Angela Merkel só para manterem a AfD à distância.
Nesta luta pela democracia no que tem sido uma década muito díficil para todos os liberais de centro as próximas semanas vão determinar se os suecos cantam I do, I do, I do ao bom senso ou se, pelo contrário, se caminha para o Waterloo de um dos sistemas democráticos mais coesos do Ocidente. Lição para todos os liberais de centro: por melhor que esteja a economia não se pode fugir eternamente a enfrentar os problemas causados pela imigração maciça por medo de se ser politicamente incorrecto. Haverá sempre à porta forças extremistas prontas para explorar esse vazio programático, sem quaisquer pudores ideológicos.