“When you’ve worked hard, and done well, and walked through that doorway of opportunity, you do not slam it shut behind you. You reach back.”, Michelle Obama
Mesmo com a pouca distância temporal que estes exercícios exigem, é já seguro dizer que Michelle Obama foi uma das Primeira-Damas mais icónicas dos Estados Unidos. O que traz a simbologia de um ícone? No caso de Jackie Kennedy foi a modernidade, a elegância, o mito quase tóxico do Camelot e ultimamente a tragédia em carro aberto naquele dia em Dallas. No caso de Nancy Reagan ela era a operadora política por detrás do Presidente, a raínha dos bailes de gala dos power eighties, o vermelho Valentino e uma crusada anti-drogas. Com Michelle é tudo um pouco mais complexo não só porque ela foi a primeira que desarmou uma certa barreira que existia entre os americanos e a Primeira-Dama (Jackie tentou isso mas sempre do pedestal privilegiado em que viveu) mas também porque acabou por ser inevitavelmente absorvida na toda poderosa narrativa americana da raça: se Obama foi o primeiro Presidente negro, Michelle também tinha de ser vista sob essa luz, debaixo dessa particularidade histórica.
Isto é problemático do ponto de vista da população negra norte-americana porque, como Malcom X tão causticamente expressou “Eu não vejo sonho americano nenhum. Eu vejo um pesadelo americano”. O papel dos Obamas ocupou assim um espaço tanto no sonho americano do passado (para o eleitorado liberal branco e confortável de classe média e acima) e do futuro (os negros americanos que não tinham nenhuns bons velhos tempos para se sentirem nostálgicos). Foi nesta particular interseção desse mito subjectivo mas essencial à vida pública e privada americana que é o sonho, a aspiração a algo melhor, que caíu a presença e a luz irresistível de Michelle Obama.
Em Becoming, o primeiro livro que conta a história dela de própria voz, lançado esta semana em todo o mundo, ela retrata a sua vida como se fosse uma forma particular de alquimia. Michelle cresceu no South Side de Chicago numa altura (anos 60) em que esse bairro começou a deixar de ser um lugar desejável para os brancos (que se mudaram primeiro gota a gota e depois em massa para os subúrbios) e em vez disso se tornou gradualmente um ghetto para negros (ainda hoje é uma das áreas com mais criminalidade em todos os Estados Unidos). No entanto, ela descreve essa fase inicial de vida como a de uma família lutadora: quatro indivíduos (pai, mãe, irmão e ela) partilhando um apartamento de apenas um quarto, com uma forte ética de trabalho e determinados em não ficar para trás, mesmo com todas as condicionantes à volta (não só a degradação do bairro onde viviam mas a própria doença debilitante do pai, esclerose múltipla).
Se Michelle fosse britânica ou europeia isto seria uma história de classe (na Europa a classe social e a religião são as narrativas fundadoras e os maiores constrangimentos históricos à ascensão individual). Ao longo do livro ela descreve-se constantemente como a “lutadora”. Mais tarde, ao recordar a primeira campanha com o marido, escreve sobre o momento em que percebeu que a sua maior tarefa era contar a sua própria história com “pessoas que, apesar da diferença de cor me recordavam a minha família – trabalhadores do Correio que tinham sonhos de vida maiores, como o meu avô tinha; donas de casa activas em organizações sociais como a minha mãe; operários que fariam tudo para melhorar as condições de vida das famílias como o meu pai. Eu não precisava de praticar ou usar apontamentos. Eu simplesmente disse o que sentia sinceramente”. Finalidade, ética de trabalho, sonho e uma sinceridade brutal – se pudesse sintetizar o que Michelle é, e o que este livro transparece, é isso tout court.
Mas esta determinação absoluta de Michelle Obama e o ninho protector da família, não pode mascarar o sentido histórico do sofrimento e violência de bairros como South Side, naquela América dos anos 60, 70 e por aí fora. E o livro não ignora isso. O bairro onde ela viveu foi transformado pelo abandono da comunidade branca, pela falência de actividades económicas essenciais e mais tarde “deteriorado pelo peso da pobreza e da violência dos gangs”. Um encontro de Craig, o irmão de Michelle, com a Polícia ensinou-lhe que a “cor da nossa pele nos tornava vulneráveis” e que “experiências persistentes de discriminação criaram na nossa família um sentimento básico, prevalecente, de desconfiança”.
Mas apesar deste contexto e do abuso a que Michelle Obama foi mais tarde sujeita mesmo já como Primeira-Dama (a congressista que fez uma piada sobre o traseiro dela, a capa do New Yorker que a retratava como uma Black Panther armada, a constante perseguição da Fox News que a chegou a chamar de Baby Mama de Barack Obama) o tom do livro é de uma dignidade pura. Não há aqui ressentimento ou a história da coitadinha (o mesmo aliás aplica-se a toda a trajectória de Barack Obama que, recorde-se, jamais usou a carta racial como trunfo eleitoral). Michelle Obama define a sua doutrina de sobrevivência e de auto-respeito no mote “Quando eles te atacam por baixo, nós elevamo-nos por alto”. E foi isso que ela fez: Michelle foi provavelmente a primeira Primeira-Dama pós-feminista: ela não usou o cargo para reclamar a conquista de direitos que já devem estar adquiridos, ela usou o cargo para expandir e ampliar esses direitos ainda mais (tanto na América como, por exemplo, nas diversas viagens que fez a países onde os direitos femininos ou individuais no geral são reprimidos). Sobretudo, nunca pretendeu ser a esposa perfeita: esta é a mulher que corrigia e até brincava com os tiques comportamentais de Barack Obama ao vivo na televisão, em frente a milhões de americanos.
Becoming é no fundo uma expansão desta personalidade e traz algo mais que falta aos dois livros que Barack Obama publicou anteriormente (a sua esperada biografia só sai para o ano): uma honestidade brutal sobre o que a política lhe custou pessoalmente, o que acaba por funcionar como a peça de realidade que falta no mito Obama. São coisas pequenas mas não insignificantes: o facto de que não poder abrir nenhuma janela da Casa Branca (devido a questões de segurança) a fazia sentir “sufocada”; como na noite em que o casamento homossexual foi aprovado nos Estados Unidos ela queria juntar-se à multidão que celebrava em frente à Casa Branca mas, para isso, não só teve de se disfarçar como passar por quinze níveis diferentes de segurança; até ao aspecto quase melancólico de rotineiramente tomar o pequeno-almoço a ver pessoas a tirarem selfies em frente à residência presidencial e pensar “o que imaginarão eles da vida dentro destas paredes?”.
Há detalhes brilhantes da história de amor entre Michelle e Barack (e esta é uma grande história de amor, fiel e incondicional, ao nível de Ronald e Nancy Reagan). A altura em que ela, ainda solteira, tentou arranjar namoradas para Barack Obama, apenas para descobrir que ele era “cerebral demais” para ir dançar Huey Lewis and the News. Há novamente uma honestidade crua sobre o bébé que ambos perderam, a concepção via inseminação artificial e sobretudo sobre a solidão de viver com um homem cujo absoluto sentido de missão não deixava espaço para quase mais nada, o que a levou a procurar terapia de casal para evitar que o casamento terminasse (imaginam uma Hillary Clinton ou qualquer outra Primeira-Dama a levantar a cortina à vida pessoal desta forma?).
“Coexistir com o forte sentido de missão do Barack, dormir na mesma cama que ele, sentar-me à mesa de pequeno-almoço com ele, foi algo ao qual me tive de adaptar”, escreve com um candura brutal. A mesma candura é aplicada a descrever a vida doméstica – a pressão de tomar conta das crianças, contas, dívidas, trabalho – uma vida que ela tentou manter o mais normal possível, mesmo sabendo que a vida dela, com seis carros de segurança permanente atrás, jamais seria normal. É difícil ser cínico seja sobre a força de carácter de Michelle ou sobre a sua autenticidade. O livro confirma o que já tínhamos observado durante os seus oito anos na Casa Branca: que enquanto ela teve de se adaptar ao molde do que a política requer de uma Primeira-Dama, mesmo assim foi um molde real e não algo puramente ensaiado para as câmaras (como foi, por exemplo, o casamento entre Hillary e Bill Clinton). É admirável, por exemplo, como ao longo de partes substanciais do livro Michelle não esconde a profunda falta de gosto que ela tem pela política como actividade corriqueira e pelo processo político em si – este é um livro ancorado num patamar moral superior (o que se tornou, convém dizer, num dos calcanhares de Aquiles dos Obamas, a ideia, para os seus detractores, de que flutuavam num plano moral interplanetário em constante pregação gospel).
“O apelo de estar em frente a um auditório a ouvir grandes promessas e chavões políticos nunca fez muito sentido para mim”, escreve a dado ponto do livro, criticando a “dinâmica feia do vermelho versus azul partidário” e a “maldade” que a afectou pessoalmente. Crucialmente ela tenta acabar, por via deste livro, com a persistente especulação sobre uma provável candidatura sua à Presidência: “Porque as pessoas me estão sempre a perguntar isto eu vou escreve-lo aqui directamente: não tenho a mínima intenção de me candidatar, nunca”. No entanto, esta é talvez a única altura do livro em que o leitor se questiona se sabe mais acerca de Michelle do que ela própria. Afinal de contas este é um livro inerentemente político, da primeira à última página: a vida dela foi construída na imensa luta política que foi a vida dos negros na América do século XX, ou como ela uma vez respondeu a um repórter quando questionada sobre os stresses da campanha eleitoral “isto não é nada comparado com a História que nos trouxe até aqui, nada”.
Durante os dois mandatos de Barack Obama foram as raízes culturais de Michelle Obama na experiência afro-americana que lhe deram legitimidade total entre os votantes negros (recorde-se que Obama é mestiço, nascido no Hawai, educado no Kenya, tudo demasiado estrangeiro para o grupo mais conservador da comunidade negra). Esse poder de ter participado inteiramente na História negra que Michelle tem reaparece aqui com uma série de avisos sobre a Presidência de Donald Trump: “a nossa diversidade vibrante como país desapareceu, substituída pelo que me parece uma uniformidade desencorajadora, o tipo de quadro inteiramente masculino e branco que encontrei tantas vezes ao longo da vida”.
Se bem que Michelle passe uma parte considerável do livro a reflectir sobre a liberdade que sentiu ao sair da Casa Branca e ao poder fazer simples coisas quotidianas (“a primeira coisa que fiz na nossa nova casa foi abrir a janela do quarto e olhar para o céu”), ao ler Becoming pareceu-me definitivamente que não estava a ler a última intervenção pública de Michelle Obama nesta nova realidade distópica que vivemos. O futuro ditará se ela estará disposta de novo a não poder abrir as janelas de casa para ver as estrelas no céu.