Indiferença, ou uma cruel forma de agressão e de abuso

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Há umas semanas, em Paris, o fotógrafo René Robert, de 85 anos, morreu de hipotermia caído numa rua movimentada de Paris. Apesar de caído à frente de todos os passantes, ninguém o ajudou, nenhuma alma minimamente caridosa chamou a polícia ou os serviços médicos de emergência franceses. Era noite mas também era uma rua movimentada. Foi um sem abrigo, ele próprio em situação de grande vulnerabilidade, que teve a preocupação e a iniciativa de alertar os bombeiros já de madrugada para um homem caído. Os bombeiros não chegaram a tempo de manter vivo o fotógrafo octagenário. Esta sucessão de omissões foi noticiada como um caso de indiferença (de todos os que passaram naquela rua) literalmente mortal.

Recordou-me outro caso muito triste. Uma criança de dois anos na China que foi atropelada, ficou caída no meio da estrada, foi atropelada novamente por outro carro, dezoito pessoas passaram pela criança sem a ajudar ou parar para ver o que acontecera até, finalmente, uma senhora idosa decidir ver o que se passava com a criança caída (morreu mais tarde no hospital). Mas este caso era lá longe, em Foshan, na China, com os exóticos e culturalmente muito diferentes orientais, onde de resto estas infelicidades acontecidas à vista de toda a gente são reincidentes. Dois anos depois da morte da pequena Wang Yue, uma senhora entalou a cabeça num gradeamento da rua e ficou também sem ajuda de quem passava até ser demasiado tarde – e morrer. Na China, à conta de tantas mortes no meio da rua e de milhares de observadores, há um debate agitado sobre a incapacidade de ajudar outros quando em necessidade. Nas ruas da China é melhor não contar com a kindness of strangers.

Mas o caso de Paris não se passou na China, foi mesmo num país de cultura cristã onde toda a gente já ouviu a parábola do bom samaritano. Não temos a proteção da distância (em quilómetros e cultural). Este ano, perto de Philadelphia, uma mulher foi violada num comboio sem que alguém tenha ajudado ou sequer ligado para a polícia; aparentemente houve quem se dedicasse a filmar os oito minutos da agressão sexual; finalmente, um funcionário dos comboio suspeitou do que acontecia e chamou um polícia. Novamente, num país de cultura europeia de raízes judaico-cristãs.

Há uns anos Simon Baron-Cohen associou a capacidade para a crueldade a ’zero graus de empatia’ (era assim que se chamava o livro que escreveu: Zero Degrees of Empathy). Normalmente é estudada a facilidade de agir para fazer mal ao outro, que virá da tal falta de empatia e nos faz ver os demais como meros objetos, desumanizados, portanto alvos de maldade sem problemas de consciência. A crueldade de uma ação é algo que todos abarcamos.

No entanto, menos falada e estudada é a maldade e a crueldade da inação. A inação – o silêncio quando se devia falar, a ausência quando alguém se devia fazer presente, a quietude quando se devia agir -, no entanto, pode ser tão igualmente agressiva e cruel quanto a ação. E vem do mesmo vício moral: ver os outros coisificados, objetos que não merecem o trabalho de palavras ou atos. Negar a ajuda que podemos dar a quem dela percebemos que precisa. Não oferecer segurança a quem de nós depende. Privar de afeto aqueles que precisam de o receber. Não proteger a quem se deve lealdade.

Esta inação/ausência/silêncio/indiferença é um vício social, como se vê nas notícias infelizes dos parágrafos iniciais. Também há consequências sempre que não agimos, falamos, protestamos quando vemos alguém ou alguma organização (um partido ou movimento político, por exemplo) atropelar os direitos ou a dignidade de outros. Ou quando nos demitimos dos nossos deveres da vivência coletiva em sociedade.

Nas relações pessoais é igualmente daninha e, sempre, um forma de violência. Crescer com mães ou pais narcisistas que não oferecem amor deixa cicatrizes para o resto da vida. Em se tratando de relações amorosas, a privação de afeto, nas suas várias vertentes (os silêncios, a distância, a inexistência de sexo, a frieza,…) é uma forma particularmente corrosiva e cruel de abuso emocional.

Todas estas formas de maldade são imensamente insidiosas, cínicas e sonsas. Afinal as pessoas não fizeram (literalmente) nada. Donde, nada existe para lhes apontar. ‘Só’ prescindiram de fazer o que tinha a estrita obrigação de fazer, e com o intuito de agredir os demais com a ausência/silêncio/indiferença – ou, em alternativa, não querendo mesmo saber do mal que resulta da tal inação. A religião católica – que nesta parte da culpa, já dizia o Freud, lidava razoavelmente com a natureza humana (afinal as confissões têm as suas semelhanças com a psicanálise) – apanha bem a maldade ao falar de pecados por ‘pensamentos, palavras, atos e omissões‘.

As pessoas são responsáveis pelo que fazem. E pelo que não fazem. Ambas podem ser formas de agredir e desumanizar o próximo.

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