A minha vénia a todas as mulheres e homens que decidiram, conscientemente, não ter filhos.

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De uma dor maior que o mundo

A minha amiga Matilde Silva contou-me da sua avó Matilde Teodoro da dor da solidão por ter sido “obrigada” a deixar morrer um filho para salvar outros nove. Esta foi uma mulher que teve a coragem de relatar, muitos anos depois, o peso que carregou: dos filhos que morreram e dos que deixou morrer. Lembro que na altura a minha amiga perguntou à avó qual seria a sua decisão se a opção fosse entre ela precisar e os filhos. Susteve a respiração e sem hesitar disse-lhe que se endividaria para sobreviver pois tinha nove criaturas que dependiam dela como de ar para respirar. Entre olhos marejados acrescentou

– Eram todos tão pequeninos. Iriam morrer à fome ou nos olhos gulosos do padre e do regedor. Eu bem os via a rondar-me a canalha. A um ainda cheguei a pegar no cabo de uma enxada para lhe arrear no lombo. Conseguiu fugir. Teve sorte eu estar prenha e não poder correr atrás dele.

– Então e o avô?

– Filha, esse filho dum corno rijo, quando vinha cá abaixo, só queria saber da taberna e de se servir de mim. Ainda se aproximou da tua tia Joana mas eu apareci-lhe com a gadanha à frente. Percebeu o aviso, que ele não era burro.

Cara ou coroa

Sabemos que o abuso sexual infantil decorre em maior número no meio intrafamiliar e que a prevalência por parte do pai é muito significativa(1). São muito raros os casos, descritos, de pedofilia praticados por mães. Contudo, já ao nível da violência emocional, sobretudo o abandono, parece ser diferente. Das centenas de relatos que tenho acompanhado em diversas comunidades virtuais por esse mundo fora, incluindo alguns do mundo real, sinto que em Portugal há como que um segredo a esconder. É proibido dizer-se “a minha mãe esquecia-se que eu existia, a minha mãe, intencionalmente, deixava-me passar fome, a minha mãe nunca me deixou escolher as minhas roupas, a minha mãe obrigava-me a arrumar a casa toda desde os meus 6 anos, eu é que tinha que cuidar dos meus irmãos, a minha mãe não queria que eu fosse estudar, a minha mãe surrava-me todos os dias, a minha mãe obrigava-me a vê-la a fazer sexo com os seus amantes, a minha mãe dizia que eu era feia, a minha mãe nunca me deixou ter brinquedos, a minha mãe dava para outras pessoas a roupa que eu recebia de presente e só me deixava usar roupa de doação, a minha mãe dizia que eu não prestava para nada, a minha mãe dizia que eu nunca seria capaz, a minha mãe comeu o meu namorado, o meu pai violou-me e ela disse-me que eu merecia, o marido da minha vizinha mostrou-me o pénis mas ela sorriu e encolheu os ombros, a minha mãe disse-me muitas vezes que desejou a minha morte, a minha mãe está sempre a amaldiçoar a minha existência na vida dela que só vim para atrapalhá-la …”

“Hoje sou uma mulher adulta e não gosto de mim, acho-me feia, tenho medo de tudo, não consigo estudar, tenho crises de pânico, tomo medicação psiquiátrica desde criança, a minha mãe não me deixa arranjar emprego, a minha mãe diz mal de mim a toda a gente, ninguém acredita em mim, a minha mãe fora de casa é uma excelente pessoa, frequenta a igreja, faz caridade, defende as causas racistas, feministas, trans, animal, também é uma excelente profissional mas, para mim, depois da porta de casa fechada diz que sou uma inútil, uma incapaz, esconde a comida para eu não comer, vigia as minhas mensagens e posts nas redes sociais, diz que só escrevo porcarias, continuo a ser a criada da casa, tudo o que faço tem sempre um defeito, põe-me fora de casa mas se saio vai a correr pedir desculpa e pede-me para vir com a promessa que irá mudar… Nunca o fez…”

“Qual o motivo para a minha mãe ter sido sempre assim comigo? Serei uma pessoa deficiente? Vim ao mundo do lado que ficou virado para baixo na moeda da vida?”

Tem que ser dada voz a estes filhos, sobretudo mulheres, a quem as mães impediram de ser crianças.

Desenlaçar equívocos

Ao abordar-se a questão de uma maternidade tóxica não se pode, de modo algum, inferir que é uma posição anti feminista.

Quando focamos este assunto não estamos a crucificar ainda mais as mulheres. Não estão a ser apontadas como o cerne de todos os males da humanidade. Bem pelo contrário. O objetivo de dar visibilidade a este tema é de as libertar. De libertar de um enorme peso por serem mães contra a sua vontade.

Paternidade/maternidade tóxica e alienação parental são dois modelos de apropriação da criança que não se sobrepõem ou interpenetram

Nada do que aqui se disser poderá ser visto como tendo alguma relação com as teses da alienação parental. Parentalidade tóxica e alienação parental digamos que são disjuntivos. Há homens e mulheres que são excelentes pais/mães assim como há o reverso da medalha. É destes que temos que falar mas nunca no sentido de acusações de manipulação da cria por parte de um dos progenitores com o objetivo de prejudicar outro.

Partir elos de uma corrente

Ao libertarmos uma mulher que é mãe à força estamos a permitir que esta espiral de violência que vem desde a hominização/humanização da humanidade estoire. Há que rebentar um dos elos desta cadeia. Não é pelo silêncio que tal se consegue. Existem muitas crianças que sofreram/sofrem por causa da deserção, a todos os níveis, dos adultos que a fizeram. Porém se todo o desamparo dos genitores é causa de uma dor profunda para o resto da vida com consequências catastróficas, em muitos casos a emocional, sendo mais dorida do que a física, é ainda potenciada por vir da mãe. Há pais ausentes e também agressivos emocionalmente mas a ferida provocada pelo desabrigo maternal é sentido com uma intensidade muito superior. Aquelas que, esperamos nós, mais nos deviam amparar pois estivemos nove luas dentro do seu corpo transportando o ovo primordial de todas as mulheres.(2) (3)

O abandono emocional das mães tem uma grande prevalência sobre as filhas, sobretudo a primogénita. Qual a razão para uma mãe não desejar para a sua filha o que sonhou para si mesma? Independência, conhecimento, inteligência, liberdade… Ou será que nunca sonhou para si? Se nunca o fez qual o motivo para não o ter feito?

Há duas questões que temos que colocar:

– Porque o abandono maternal é uma emoção inominável?

– Porque há mães que rejeitam as suas crias ou uma delas?

Do destino

Ressaltam, basicamente, dois fatores que se cruzam e são interdependentes: o modelo judaico-cristão e o patriarcado.

No modelo judaico-cristão temos a idealização da mãe como a grande cuidadora e protetora quase ao nível da santidade e como tal ausente de pecado fazendo um paralelismo com a mãe de Cristo pois esta seria o modelo, obrigatório, para todas.

Assim no Génesis ficamos a saber que os humanos são feitos à imagem de Deus…

«Então disse Deus: Façamos o homem humano à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os grandes animais de toda a terra e sobre todos os pequenos animais ­que se movem sobre a terra.» Génesis 1:26

…encontramos, então, em Efésios o respaldo da intocabilidade dos progenitores, isto é se eles são “humanos feitos à imagem de Deus” tal implica que também e eles, exatamente como a Deus, os filhos lhes devem  uma obediência cega…

«1. Vós, filhos, sede obedientes a vossos pais no Senhor, pois isso é justo.
2. Honra a teu pai e a tua mãe – e é o primeiro mandamento com promessa;
3. Para que te corra bem, e vivas muito tempo sobre a terra.» Efésios 6:1-3

… e, portanto, com esse estatuto de “igual a Deus” os progenitores têm como missão educar/castigar/disciplinar o seu filho se não o fizer significa que não ama o filho tal como não ama a Deus.

«Quem se nega a castigar seu filho não o ama; quem o ama não hesita em discipliná-lo.»Provérbios 13:24

Acrescente-se, ainda, a santidade dos filhos gerados

«Os filhos do teu ventre serão abençoados, como também as colheitas da tua terra e os bezerros e os cordeiros dos teus rebanhos.» Deuterónimo 28:4

Repare-se na similitude com o anúncio feito pelo Anjo Gabriel à mãe de Cristo em que refere que esta irá conceber, sem a mácula do pecado original, o filho de Deus a quem deverá chamar Jesus. Estando esta mulher imbuída de tais poderes, nós pecadores pedimos-lhe que interceda, sempre por nós, nas nossas horas de aflição.

«Avé Maria cheia de graça, o Senhor é contigo, bendita sejas entre todas as mulheres, bendito é o fruto do teu ventre, Jesus.

Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amén»

Para o patriarcado estas posições da Bíblia não podiam ser aceites. Se por um lado não tinham como negar a função da mulher como essência da vida, que lhe confere um enorme poder, para o contrabalançar ou lho retirar nada melhor do que fazer com que cada uma que não sentisse em si o apelo da maternidade ou não conseguisse produzir descendência se vivenciasse ao nível de coisa dispensável. Haverá emoção mais dolorosa do que a de se sentir uma inutilidade, um peso para o mundo? A par desta escravidão emocional temos todas as outras que já referi neste artigo.(5)

Nesta total distorção entre aquilo que a Bíblia preconiza, numa linguagem própria da sua época, e aquilo que serve os interesses dos homens ou de alguns homens, muitos, as mulheres e as suas crias tiveram que lutar pela sobrevivência. Sobrevivência física mas sobretudo emocional.

Foi uma luta dura e muito sangrenta em que dois dos preceitos maiores da civilidade plasmados nas chamadas Leis Divinas ou Leis Naturais, comuns a todas as civilizações e religiões embora cada uma com a sua linguagem especifica, – o amor e o perdão – foram totalmente manipulados.

A igreja passou a ser o lugar dos homens, género masculino, e não dos humanos. O amor a Deus traduziu-se na prática por temor, não no sentido de respeito, de louvor mas de medo, de obediência cega aos homens (género masculino) enquanto “representantes de Deus” e como tal superiores em direitos às mulheres; o sentimento de perdão no sentido de apaziguamento, de paz interior, de libertação, de justiça… passou a sentimento de culpa e pecado.

Se todas as mulheres devem procurar igualar-se à Mãe de Deus mas se há uma impossibilidade biológica que é a de gerar filhos sem praticar coito, então todas as mulheres desde que nascem, porque nascem de uma mulher que fornicou, já nasceram no pecado. Deste dogma vem a famosa expressão, tão ao gosto masculino, “todas as mulheres são putas”. Portanto, se nós, a mulheres, nascemos, vivemos e morremos sempre em pecado implica que devemos, por essa condição, obediência aos homens sem direito ao perdão. Somos de tal modo impuras que conseguimos convencer o homem, casto e probo, a comer a maçã. Eles nunca seriam capazes de tal ruindade.

Se a natureza nos mostra, e a etologia comprova, que não temos que obrigatoriamente ser todas mães e se a sobrevivência individual, depois de estarmos cá fora, se sobrepõe à grupal, então, a este vulcão de tensões entre a biologia e a societal/patriarcal, as nossas ancestrais tiveram que responder com uma vontade férrea, animalesca, primária… porém, mascarada de uma grande “santidade”. Era assim que nos queriam pois era assim que nos iriam ter.

 

«Porém, se alguém não tem cuidado dos seus, e principalmente dos da sua família, negou a fé, e é pior do que o infiel.»1 Timóteo 5:8

As primeiras sobreviventes(6) deste infortúnio passaram as suas estratégias às crias que por sua vez passaram às seguintes… até aos dias de hoje. Foi um trabalho feito de um modo explícito ou não. Sabemos bem que as aprendizagens também se fazem apenas pelo olhar pelo buraco da fechadura, pelo ouvir atrás da porta. Muito antes do aparecimento da linguagem já o bebé, na fase “estou a ser expulso do paraíso”, está a experienciar e a memorizar sons, texturas, cheiros, gestos, expressões, movimentos, prazer e desprazer em suma, emoções.

Pode obrigar-se alguém a amar outro?

Como pode alguém que nunca desejou parir ser capaz de se entregar ao amor de uma cria? Como pode alguém que não foi desejado, logo, à partida, emocionalmente rejeitado, aprender o que é o amor?

Amar o outro, com o que isso implica de nos descentrarmos de nós, será uma Lei Divina ou Lei Natural para todos sem exceção como nos fazem crer e exigem todas as religiões?

Será condição de sobrevivência da espécie Homo Sapiens.

Continuação em breve.…

NOTAS

(1) Estatísticas da APAV e do Ministério da Justiça

(2) Ovogénese

página 15 e seguintes

(3) ADN mitocoindrial

(4) O versículo seguinte é quase sempre omitido

E vós, pais, não provoqueis a ira a vossos filhos, mas criai-os na doutrina e admoestação/equilíbrio do Senhor.

(5) O roubo do amor maternal como forma de nos escravizar

(6) Transmissão do trauma

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Psicóloga desativada com uma costela, no feitio, de Brites de Almeida em que tal como ela é mais a fama do que o proveito. Entre 1960, em Trás-os-Montes onde fui parida e o Porto onde fui feita segundo rezava o meu pai quando farto das minhas impertinências desabafava "por que não fui à pesca nesse dia?" e hoje, Coimbra, do meu mundo fazem parte 5 rios, o primeiro dos quais no alto alentejo raiano e 12 localidades por chão onde muitas vezes me descalcei para ser alimentada. Não sei quem escreveu mas um dia li e tomei como minha "se vos contasse tudo o que penso e vejo seria internada" Saltimbanca me sinto desenguiçando o emaranhado das ideias, qual marioneta, no caos do mundo em que me sento a atuar no pequeno palco comandada por forças que não controlo.

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