3 Mulheres – arrojadas e irresistíveis

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Imagem de IMDB

Já aqui fiz a declaração de interesses: poucas coisas – na vida de usufruto de livros e filmes e séries televisivas – me dá tanto prazer como uma vida real bem contada. Se o sujeito da história (e objeto do livro, filme, série) é uma personalidade original, inconformista, que viveu e viu os seus tempos – e melhor se forem tempos sobressaltados e interessantes, daqueles de que são feitos os manuais de História – de uma forma peculiarmente individual, ou de um ponto de vista privilegiado e insubstituível (Michelle Obama vem-nos à ideia), e toda esta boa panóplia é-nos contada por um escritor, argumentista ou realizador de mão cheia, bom, só nos resta entregar o nosso tempo para sermos deliciados com estas leituras e cinematografias.

De livros nunca estivemos à míngua destas histórias, sob forma de biografias (de mortos ou vivos), memórias, todo o tipo de livros confessionais de life writing, pelo menos desde o já famoso e infame memory boom dos anos 90 do século passado. E só alguém de coração (ou cérebro duro) não se deleita com uma Nancy Mitford serpenteando pela vida de Luis XIV ou de Madame de Pompadour, ou com a vida das quatro irmãs Lennox em Aristocrats, de Stella Tylliard (que foi catastrófica, para ser contida, na sua incursão pelo romance).

Nas imagens elétricas (como lhe chamam os chineses), felizmente estamos em moda de biopics, documentários e de séries televisivas biográficas. Já aqui referimos o documentário sobre Alexander McQueen, os cêntimos da Netflix sobre Joan Didion, a história da correspondente de guerra Marie Colvin, a viagem à Lua com os holofotes quase totalmente sobre Neil Armstrong. Não são caso único. Houve há quatro anos duas biopics sobre Yves Saint Laurent (vi uma delas). Todas as pessoas de boa vontade andam ansiosas com as estreia da terceira temporada de The Crown, essa série televisiva retratando Isabel II e que deu ao mundo Clare Foy (agora substituída por Olivia Colman, que nos seduziu em Broadchurch). Bohemian Rapsody por estes dias oferece-nos Freddie Mercury nos cinemas. E poderia continuar.

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Imagem de David&Golias

Felizmente a febre biográfica também contaminou Portugal. Na RTP – dando um exemplo de serviço público, tanto pelo apoio à produção nacional de conteúdos como trazendo à audiência um pedaço da nossa História recente – podemos ver 3 Mulheres. Hoje será exibido o sexto episódio da série. Nela vemos Natália Correia, Vera Lagoa (até agora, ainda na versão Maria Armanda Falcão, antes de se tornar a jornalista afiada) e Snu Abecassis. Três mulheres que, reconheçamos, não eram o comum feminino no Portugal pequeno, paroquial e irreprimivelmente conservador e imobilista dos anos 60 e 70 do século XX. Natália Correia, a literata não convencional, exuberante, de sexualidade desafiada, com gosto por chocar. Vera Lagoa, a cara bonita de televisão tornada cronista implacável, casada pela segunda vez com um homem quinze anos mais novo. Snu Abecassis, que foi mais do que a mulher por que o católico do Porto conservador se apaixonou e abandonou o seu muito tradicional casamento; fundou a Dom Quixote, uma das mais marcantes editoras nacionais.

Três mulheres que recusaram o papel comedido, secundário e confinado à esfera doméstica ou das atividades de beneficiência que o mundo em geral e o Portugal do Estado Novo em concreto lhes aconselhava. Curiosamente, as três usando o poder das palavras para contestar politicamente, socialmente e culturalmente a realidade em que viviam.

Não posso dizer que foram mulheres que me marcaram. Lembro-me de as ouvir referidas por pais e irmãos mais velhos em criança, mas quando cheguei à adolescência já eram referências inexistentes. Mas dá gosto vê-las na série. Sobretudo Natália Correia. Porque transparece a sua personalidade – não sei – ou porque no ecrã é uma soberba e vivaz Soraia Chaves. Maria João Bastos, a Vera Lagoa da ficção, é também encantadora e apelativa. Snu Abecassis é a mais desinteressante. Demasiado séria e hirta, custa vislumbrar a mulher que levaria o energético Sá Carneiro a abandonar a família e ameaçar abandonar a política.

Os primeiros três episódios viram-se de uma assentada. Vamos conhecendo a personalidade das três mulheres, há a candidatura abortada de Varela Gomes e a prisão e tortura (bastante mostrada, e na quantidade certa) pela PIDE de José Manuel Tengarrinha, o marido comunista de Maria Armanda Falcão. Os últimos dois episódios tiveram menos sumo. Em todo o caso, continuou a ser um prazer ver a série. Alguns diálogos são um tanto encenados e pouco escorreitos, o casal Snu e Vasco Abecassis não é entusiasmante (opõe-se a isto a química sexual entre Vera e Tengarrinha) – nada é perfeito – mas as retratadas são uma preciosidade, Soraia Chaves e Maria João Bastos recomendam-se, e – ah, é televisão, pelo que como diz a canção ‘beleza é fundamental’ – é visualmente muito bonita a série. Os cenários estão impecáveis, os figurinos ainda mais. Provavelmente fugindo à realidade portuguesa – com tendência pouco ousada em tocando às cores – os episódios têm cor, a casa de Snu é um regalo à vista (as de Natália e Maria Armanda, noutro registo, também), as roupas que colocaram em Soraia Chaves são vibrantes e coloridas.

Somando e subtraindo tudo, vale muito a pena ver. Também para ganharmos traquejo para em Março de 2019 assistirmos ao filme Snu, realizado por Patrícia Sequeira.

vera lagoa
Imagem de David&Golias
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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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