É um filme de guerra, este Uma Guerra Pessoal, de Mathew Heineman, que vai estrear a 22 de novembro. Não é um filme de ação, não é um filme de suspense – a narrativa não vive das personagens conseguirem ou não, através de peripécias sucessivas, escaparem aos perigos dos cenários de guerra – mas dói ainda mais por isso mesmo.
Uma Guerra Pessoal é mais um exemplo da recente tendência da indústria de cinema para os biopics (género que eu, declaro já, muito aprecio quando é bem apurado, de resto tal como na literatura: poucas coisas são mais prazenteiras de ler que a história de uma pessoa do mundo real quando cândida e escrita com talento e empatia). Desta vez a ‘biografada’ é Marie Colvin, a correspondente de guerra do The Sunday Times durante várias décadas.
É um filme de guerra, afinal vemos várias guerras. E vemo-las não através das batalhas e das proezas militares, das vitórias e dos recuos, das rajadas de tiros e das bombas (apesar de também constarem no filme, claro, bombas e tiros, afinal uma guerra não é uma escaramuça com caules de flores). É consideravelmente mais violento: vemos a guerra através dos corpos desfeitos dos civis, do desespero de quem está encurralado no meio de lutas mortíferas, da angústia da mãe que conta como uma filha morreu, da morte de uma criança, da fome e da falta de alimentos e medicamentos (e de médicos) dos civis que vivem debaixo de bombas, da confissão de um violador em massa, das filhas e das viúvas que descobrem as ossadas dos pais e maridos quando se desenterra uma vala comum. Vemos a guerra como Marie Colvin escolhia mostrá-la: as consequências terríveis nos civis. Para Marie Colvin a guerra não era uma abstração de movimentos de exércitos e números de baixas. A jornalista sabia o poder das histórias pessoais – e contava-as para obrigar o mundo a empatizar com o horror da guerra. Também conhecia a obrigação dessa missão nobre de ‘prestar testemunho’, que tantas vezes é a única reparação possível às vítimas: garantir que as suas histórias não são esquecidas, que, pelo contrário, são contadas e tornam-se perenes através da palavra escrita.
E é um filme de guerra que nos traz a guerra privada, pessoal (daí o título) de Marie Colvin. O stress pós traumático que inevitavelmente veio com a presença em tantos contextos de guerra e com a perda de um olho quando reportava a guerra civil entre o governo do Sri Lanka e os Tigres Tamil. O alcoolismo. As relações amorosas entrecortadas pelas incursões nos cenários de guerra. O vício de voltar para as reportagens de guerra. Os perigos suicidários a que se expunha para obter e contar as histórias.
Marie Colvin obrigava-se a si própria a ver as atrocidades da guerra para que os que não as viam pudessem, sentados nos seus acolhedores sofás europeus e americanos, vê-los através dos olhos e das palavras da jornalista. E pagou (quase de bom grado) o preço que lhe foi pedido por esta exposição às mais negras consequências da natureza humana. Afinal morreu na Síria em 2012, enquanto reportava o cerco de Homs, suspeita-se que deliberadamente targeted pelo exército de Assad.
O filme não deixa de ser um statement político, ainda que não demasiado vincado, contra as atrocidades assinadas por Bashar El-Assad na guerra civil síria. Os opositores mostrados não são extremistas partidários do ISIS ou da Al-Qaeda, apesar de se queixarem a slides tantos de que são assim retratados no Ocidente. Não vou entrar na discussão se a realidade é mais complexa que esta divisão entre Assad-mau e insurgentes-bons, porque o filme vale muito para além disso. De qualquer modo, é também um filme sobre jornalismo, e sobre os efeitos do jornalismo na política (internacional, no caso) e na opinião pública. Os jornalistas certamente verão a obra de Mathew Heineman como algo mais confessional. Tanto assim que a Wisdom Consulting, que organizou a antestreia do filme, convidou vários jornalistas portugueses que já estiveram em cenário de guerra para debater, antes da exibição do filme, tanto as suas visões do jornalismo de guerra como a história de Marie Colvin em Uma Guerra Pessoal.
E, para terminar, realço Rosamund Pike, a Marie Colvin em película, intocável. Sóbria e vulnerável em doses sempre certas, sem uma única vez ceder a histerias lamechas. Uma força da natureza ferida. Stanley Tucci faz uma pequena, mas nunca modesta, aparição. E o argumento, que está soberbo, da autoria de Arash Amel, baseado no artigo de Marie Brenner na Vanity Fair, ‘Marie Colvin’s Private War‘.
É caso para dizer: leia o artigo, veja o filme.