As Coisas Desfazem-se

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Em 1967, Joan Didion foi a San Francisco ver a “hemorragia social” no sítio “onde ela estava a acontecer”, onde “as crianças se estavam a juntar e chamarem-se a si próprias de hippies”. O que viu, pelo menos a crer no ensaio que sobre isso escreveu para o Saturday Evening Post, horrorizou-a. O “retrato quase dickensiano da vida” numa California que parecia ser “o princípio do fim”, “cheia de adolescentes a tentarem parecer ligados” numa “desesperada tentativa de uma mão cheia de crianças pateticamente impreparadas para criar uma comunidade num vácuo social”, “menos em rebelião contra a sociedade do que em ignorância dela”, lembrava-lhe apenas “um modelo em escala do Vietnam” – a guerra, não o país –, a rapariga de cinco anos pedrada em LSD que se lembrava “de ter ido à praia uma vez há muito tempo, e gostava de ter levado um balde”, ou o rapaz de três a morder um fio eléctrico, aterrorizadores símbolos de um simulacro de cultura cheio de aspirações mas sem qualquer futuro. Em 2018, quem quer que saiba o que veio depois (Manson, Nixon, Altamont, toda a feira de horrores que anunciou o fim dos sonhos) reconhecerá que ela tinha razão.

 The Center Will Not Hold, o documentário sobre Didion realizado pelo seu sobrinho Griffin Dunne, o actor conhecido pelos apreciadores de Martin Scorsese pelo seu papel no injustamente subvalorizado After Hours, e disponível no Netflix (diz-se “no Netflix” ou “na Netflix”? Ninguém me convence que esta não é grande questão dos nossos dias) não é sobre um futuro adivinhado em tempos e confirmado pela experiência. Didion não aparece nele como uma profeta. Aparece como alguém que viveu e por isso perdeu, que sabe que na vida tudo se perde, porque o tempo passa e nada fica, por muito que queiramos o contrário.

O filme abre com plano de um carro a atravessar a Golden Gate, a caminho de San Francisco, seguido de imagens de hippies nas ruas da cidade. As palavras de Didion seguem-se, lidas pela própria, não na voz da jovem atraente que as fotos de arquivo vão mostrando, mas da senhora frágil, magra e velha que aparece a seguir. O decoro e as nossas sensibilidades aconselhar-nos-iam talvez a usar palavra “idosa”, mas “velha” é mais verdadeira, a rudeza do seu som e significado uma tradução mais fiel da realidade que a imagem não esconde. As palavras levam-na atrás no tempo, à infância, e o filme vai com ela, à juventude em New York, ao começo da carreira na Vogue, e a como lá “aprendeu a escrever”.

Didion conta que quando conheceu o marido, soube que queria que “aquilo continuasse”. Dunne mostra entrevistas do tio e da tia, contando como se conheceram, como viveram, como se zangaram e como continuaram juntos apesar de tudo, e o “tudo” por que passaram foi tudo menos fácil.

Quando se mudaram para a California, para uma casa em Portuguese Bend (que o sobrinho recorda cheio de saudade), a terra dourada prometeu-lhes – não o promete a todos? – felicidade, se não eterna, pelo menos duradoura. E durante algum tempo, parecia que a promessa seria cumprida. John Gregory e Didion começaram a escrever para o Saturday Evening Post, para a LIFE, para a Esquire. Mudaram-se para Hollywood, onde também começaram a trabalhar, escrevendo e retocando argumentos para filmes, uma actividade lucrativa embora nem sempre recompensadora. Escreveu livros, “fez parte da paranóia do tempo”, contou-o a quem a leu. Mudou-se com a família para perto da praia, bebia a sua Coca-Cola, começava a trabalhar. Harrison Ford trabalhou para ela, como carpinteiro, a arranjar-lhe partes da casa. Começou a escrever para a New York Review of Books, sobre os novos tempos, a contá-los, a explicá-los. Viajou para El Salvador para ver e compreender a guerra civil no país. Viu Washington – não a cidade em si, mas “Washington” enquanto sinónimo do “jogo político”, a encenação artificial em que os políticos preocupados apenas em ganhar e manter o poder se especializam e que os separa do comum dos mortais que supostamente deveriam estar no centro das suas preocupações.

Continuou a escrever. Escreveu os ensaios e livros que a tornariam famosa, pelos quais é admirada, que a farão viver depois de morrer. Didion e John Gregory queriam ter filhos, e quando não os conseguiram ter, Didion recorda, “foi-nos oferecida uma”: “um dia tocou o telefone”, e uma recém-nascida – Quintana seria o seu nome – que precisava de ser adoptada tornou-se “nossa”, diz Didion, com as lágrimas a surgirem nos olhos, não tanto pela recordação do momento mas pelo peso do que estaria para vir. “A realidade não podia ter sido mais perfeita”, mas também não podia durar. O casamento começou a “não correr bem”. Foram de férias para Honolulu, “in lieu de pedirem um divórcio”. Quintana estava a crescer, e Didion sentia-a a fugir, sentia-se a perdê-la. Mudaram-se para New York. Quintana “estava a beber demasiado”. Na véspera de Natal estava demasiado doente para ir jantar com a família. No dia seguinte entrou no hospital. John Gregory morreu, subitamente, e subitamente o mundo de Didion morreu com ele. Quintana recuperou o suficiente para ir ao funeral do pai, mas pouco depois, em Los Angeles, entrou em coma, do qual não saíria. Didion ficou, e fez a única coisa que podia fazer: escrever.

Ao longo do filme, Dunne entrevista familiares e amigos, um interminável rol de recordações e admirações, tudo sobre um passado que, como a própria Didion várias vezes repete, com palavras diferentes mas sempre o mesmo sentido, acabou e não vai voltar. Quando o seu casamento com o “protector” – e “cabeça quente”, acrescenta Didion com ternura – John Gregory Dunne, e mais ainda depois da sua morte (e da filha) se tornar o assunto do filme, é impossível não notar que essa constatação a magoa. Se as coisas dependessem da vontade de Didion, diz-nos o que a lente nos mostra, ela gostaria de voltar atrás, ou mais ainda, de não precisar de voltar atrás, de nunca de lá ter saído, do que tempo em que as coisas eram, em que pressentiam que estavam prestes a desfazerem-se. É algo que eu próprio muitas vezes penso e quero, que um qualquer tempo da minha vida que recordo com saudade nunca tivesse passado, que ainda hoje lá estivesse, que a minha vida fosse com uma GIF (uma GIF? Um GIF? Outra grande questão que a modernidade nos impõe) repetida em circuito perpétuo aqueles cinco a dez segundos que queria que nunca tivessem acabado. Mas como muitas vezes penso também que também no passado quis o mesmo, que também antes desses cinco ou dez segundos houve outros a que queria voltar, outros que preferia não ter passado à frente, talvez a própria Joan Didion pense o mesmo, e até por vezes julgue, como todos os grandes pessimistas ocasionalmente julgam, que não é possível voltar aonde e aquando se foi feliz, porque a felicidade é algo que se deseja, não algo que alguma vez se tenha.

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