Como a campanha e as eleições trataram as suas protagonistas

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Imagem de Isabel Santiago

Vamos lá primeiro às coisas boas. Vamos ter o parlamento com maior número de mulheres de sempre, com cerca de 38% de mulheres. É um bom caminho para a igualdade de representatividade, para exponenciar as nossas vozes, para termos mais afetivos parlamentares a imporem os problemas e desigualdades que recaem sobre a metade feminina da população. Nunca devemos esquecer que quanto maior a percentagem de mulheres num parlamento, mais vezes se referem, se discutem nesse parlamento e se debatem os problemas específicos das mulheres (ver o exemplo de Mary Beard em Mulheres e Poder, Um Manifesto do parlamento de Gales quando se tornou paritário, só para vos trazer um caso). Por outro lado, as iniciativas políticas das mulheres parlamentares são mais focadas nos interesses das mulheres que as iniciativas dos homens parlamentares. Vejamos estudos sobre os casos americano e britânico.

Também não percamos de vista o bom resultado da maior participação política feminina: a diminuição da corrupção.

Uma particular boa notícia é a eleição de três mulheres negras – Joacine Katar Moreira (LIVRE), Romualda Fernandes (PS) e Beatriz Gomes Dias (BE) – para a Assembleia da República, que se tornam assim não só representantes e voz das mulheres, mas também representantes e voz dos negros em Portugal. Tal permitirá, sem dúvida, trazer as experiências de vida desta parte da população, os seus problemas específicos, as suas necessidades quanto a políticas públicas para o debate. Ganhamos todos.

(Sim, já existiram Helder Amaral e Nilza de Sena como deputados, e de partidos de direita. Mas, como de costume na direita, e também se aplicando às mulheres, sempre foi exigido que para serem escolhidos e participassem que tornassem estanques parte das características que ninguém tem dúvidas que os formaram – sexo e cor de pele – e nunca terem a veleidade de representarem esta população específica.)

Porém falta ainda caminho. Falta haver maior paridade no parlamento e, sobretudo, transpor-se a paridade para os cargos políticos executivos.

Mas a campanha também teve os seus momentos sinistros, mostrando o plano inclinado costumeiro em se tratando de lidar com mulheres.

Tivemos a acusação descabelada de gaguez alegadamente inventada por Joacine Katar Moreira. Almas conspiracionistas correram a afirmar que uma forma de ganhar votos era fingir-se de extremamente gaga – de um forma muito proficiente, diga–se, porque só uma atriz consumada conseguiria tal desempenho. Claro que a gaguez não é uniforme, e pode ser muito mais pronunciada com o stress e o nervosismo (como ir à televisão ou ser entrevistada por uma grande órgão de comunicação social), e não custa muito a qualquer pessoa pensante chegar a essa conclusão. Mas evidentemente entrou o argumento oh tão insidioso que é tão fácil saltar: a mulher é uma mentirosa.

Esta argumentação da mentira tem sido um argumento consistente do machismo camuflado atual: as mulheres mentem; muito. É usada para tudo, desde a violência sexual (a vil alegação de que as acusações falsas de violação são numerosas e recorrentes) até à política. Tem um objetivo claro – tirar credibilidade ao que as mulheres dizem e fazem (porque é falso, postiço, uma encenação), para anular os contributos femininos. (No entanto, apesar de ser claramente dirigido ao apagamento das mulheres, muitas mulheres facilmente entram nestes argumentos contra outras mulheres.)

A mesma Joacine que só no último dia da campanha teve direito a notícia com fotografia no Público. Antes disso, o jornal ilustrava sempre os pequenos partidos com as imagens masculinas dos outros cabeças de lista, inclusive quando as sondagens a beneficiavam.

Tivemos a agressão a Assunção Cristas, com uma senhora do Porto que lhe bateu no peito. Sim, já houve políticos homens agredidos (e o próprio primeiro-ministro num momento inaceitável de descontrolo se arvorou ameaçador contra um idoso que o interpelava – com razão ou sem, é indiferente) mas claro que é mais fácil, sempre, agredir uma mulher que um homem (que é mais forte fisicamente). Sintomaticamente, este evento foi desvalorizado e quase nem mencionado – como usualmente com a violência sobre as mulheres.

Ainda sobre Assunção Cristas, que teve um muito mau resultado eleitoral, e em grande parte por erros próprios que não devem ser escamoteados. Não devemos esquecer como parte do CDS não tolerava ter à frente do partido uma mulher moderna, favorável às quotas, com voz, que era fotografada na praia de bikini ou com vestidos acima do joelho. Não esqueçamos como da parte mais bafienta do partido vieram as acusações de que Cristas se fotografava como uma atriz de telenovela – como se uma política tivesse de ser recatada e não devesse ter vida e roupa como a das mulheres comuns do século XXI, como se exibição de desenvoltura fosse vulgar (e como se ser atriz de telenovela tivesse alguma carga depreciativa; para pessoas bafientas do CDS aparentemente tem).

Lembremos ainda ataques vulgares por Cristas saltar para um lagar de pisar uvas, onde um canal maldoso tirou uma imagem estática do meio de um vídeo que dava a ideia de Cristas escarrapachada de pernas abertas.

Noutro registo, e outra vez nesta campanha, foi indecorosa a forma como Rui Moreira – que aproveitou o apoio do CDS para ganhar a câmara do Porto das duas vezes – se distanciou de Cristas ao perceber que o CDS teria um mau resultado. A cobardia é feia, a pequenez de quem não sente obrigação de retribuir (sim, mesmo em política) ainda mais. Penso que Cristas não previu aquilo que é uma verdade universal: a rapidez com que os homens espetam facas nas costas das mulheres que ganharam visibilidade.

Para terminar, dois partidos com ideologia machista ou mesmo misógina, num caso mais assumido que noutro, o Chega, e a IL, elegeram cada um um deputado.

Em suma, demasiado misturado de bom e mau, tanto o resultado como o processo.

 

 

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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