Quando a Igreja é agente do Mal

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É tudo mau. O Patriarcado português a apelar ao voto em certos partidos, em vez de usar a boa e velha máxima daquele dude chamado Jesus Cristo que não percebia patavina da religião católica (sem ironia, porque muitos dos católicos atuais estão a anos-luz da mensagem de Jesus): a César o que é de César. (Demoraram duas horas a apagar o post.) Ah, e respeitar a consciência de cada eleitor, católico ou não.

O mau atinge a malignidade quando percebemos que a Igreja Católica está em Portugal a apelar ao voto em partidos como o Basta (ou Chega ou lá o que é) – que tem uma ideologia de demonização de grupos étnicos e raciais que é contrária a tudo o que a religião católica defende. Que diaboliza qualquer imigração – quando todos os Papas (não, não foi só Francisco) sempre apelaram a uma política compassiva de acolhimento nos países ricos de pessoas que vivem em países pobres. Que é contra todas as migrações, mesmo aquelas em que os migrantes partem dos locais de origem para, precisamente, salvar a vida – fugindo quer da pobreza extrema, quer da guerra, quer de perseguições políticas. Que defende a pena de morte e a prisão perpétua (repito: pena de MORTE). Que usa linguagem de ódio, divisiva, para criar sectarismos e polarização dentro das comunidades. Que é nacionalista – quando a Igreja é, por definição, universalista.

O mau atinge a categoria de Mal, com letra grande, quando vemos o que é para o Patriarcado a ‘defesa da vida’. Incluírem a vida uterina desde que o espermatozóide fertiliza o óvulo, faz sentido. A recusa da eutanásia, também. Pode não se concordar com as posições, mas de facto são uma forma de defesa da vida.

Que na ‘defesa da vida’ conste o ‘combate à prostituição’, mais uma vez vejo lógica. Afinal a prostituição é, como Helena Tender já aqui mostrou, a profissão mais mortal do mundo. Combater a prostituição é de facto promover a vida. Aqui acertaram, vá lá. E para as mulheres que se prostituem que não morrem diretamente da sua ocupação, a prostituição ainda assim é uma forma de morte em vida (morte da dignidade, da autoestima, da autodeterminação sobre o nosso corpo, da auto imagem, da reputação,…)

Porém já me faz espécie por que raio a liberdade de educação (e eu até tendo a concordar com o conceito) faz parte da ‘defesa da vida’. Ser contra os contratos de associação mata quem, exatamente? Porventura morre a doutrinação católica que se faz nos colégios católicos, bem como a influência (mais imaginada que real, digo eu que andei em colégios de doroteias e jesuítas toda a vida) da Igreja na educação das criancinhas. Mas isso, lamento, é questão de poder e de influência da Igreja e das ordens religiosas, não é de ‘defesa da vida’. Que se confundam tanto os conceitos só mostra como as pessoas na Igreja estão auto absorvidas e consideram o seu ego e poder uma questão de vida ou de morte – para outros. Presunção e água benta, bem diz o ditado.

E a oposição à ideologia de género é defesa da vida? WTF? O que é isto? Por muita leveza que eu veja nas questões de identidade de género, que diabo faz uma coisa destas na ‘defesa da vida’? Quem é que morre se um transexual mudar de sexo? E não há problema nenhum em termos de ‘defesa da vida’ no bullying continuado a que homossexuais e transexuais são submetidos nas escolas e noutras instituições? A vida só é perigada se for exterminada? O desrespeito pela dignidade humana de outros não é um atentado à vida? Que coisa tão feia vinda de gente alegadamente católica.

As barrigas de aluguer podem ser exploração do corpo e sistema reprodutor das mulheres. (Eu não tenho esta visão. Acho que devem ser permitidas.) Ainda assim, por que carga de águas as alminhas do patriarcado vêem as barrigas de aluguer como promotoras de morte se, lá está, ajudam a gerar vida?

Mais. Onde estão preocupações com a vida das mulheres? Onde está a defesa das mulheres em contexto de violência doméstica – que é já a maior causa de assassínios em Portugal? Quando são mulheres a morrer a vida já não conta? Só quando estão no útero de outras mulheres é que matar mulheres é mau? Como é que a Igreja pode apoiar partidos com mensagens machistas, se o machismo efetivamente mata mulheres, e, simultaneamente, dizer que faz a ‘defesa da vida’? Que raio de hipocrisia é esta?

E a violência sexual? Ah, mas um dos grandes especialistas de violência sexual – contra crianças e adolescentes – é a Igreja. Como é que uma instituição que alberga e protege agressores sexuais contra freiras e crianças e adolescentes pode arvorar-se em defensor da vida? Não sabe as consequências da violência sexual?

E a Igreja ficar calada, envergonhada – como devia – em vez de tentar influenciar eleições demonstrando apoio a ideologias de ódio e de morte?

patriarcado2

 

 

 

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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