Já escrevi no outro dia sobre o movimento Me Too (quer o inicial nos Estados Unidos quer o atual em Portugal): aconteceu em resultado do falhanço dos tribunais, das empresas e das mais variadas organizações em lidarem com, prevenirem e punirem assédios sexuais em contexto laboral. Os tribunais estão desenhados para ser praticamente impossível provar crimes contra mulheres – aqueles feitos na intimidade, ou em contextos em que não há testemunhas, restando a palavra de um contra a de outro. E, sabemos, a palavra do homem é mais considerada que a da mulher. Por isso as queixas de assédio caíam (pudera, até as queixas de violação e abusos sexuais caem por deficiência da investigação), não havia acusações, nem condenações.
Do mesmo modo, as organizações preferiam sempre proteger os homens poderosos mais acima no escadote empresarial que fazer qualquer reparação às mulheres na base da pirâmide do poder económico e social. Eram elas as despedidas, retidas nas carreiras, forçadas a abandonar projetos que só conseguiriam concretizar se cedessem ao assédio, ignoradas pelas instâncias a quem relatavam o que se passava. Isto tudo enquanto, muitas vezes, se sabia generalizadamente quem assediava – e continuavam a bater palmas, a aplaudir, a dar prémios, a bajular publicamente quem se conhecia ser, em privado, um, predador. Weinstein foi um caso paradigmático, mas não foi o único. Roger Ailes na Fox News é outro expoente de maus tratos a mulheres colocados como modo de vida do negócio.
Ignoradas e abandonadas por todas as instâncias que, supostamente, alegadamente cuidam da manutenção do bem dos cidadãos ou dos trabalhadores de uma organização, as mulheres viraram-se para as redes sociais para contar as suas histórias. Porque contar é uma pulsão incontrolável de quem tem uma história traumática.
É, portanto, tanto curioso como risível que, perante as denúncias que sucederam nos Estados Unidos e acontecem agora por cá, as primeiras palavras sejam para a necessidade de manter a sacrossanta presunção de inocência. E recomendar que os casos se resolvam em tribunal.
A hipocrisia disto tudo é gritante, claro. Desde logo porque muitos casos já prescreveram – passaram-se há anos. Por outro lado, os que não prescreveram teriam no Ministério Público e nos tribunais o destino do costume: não acusação ou não condenação. Pelo que clamar por resolver casos destes em tribunais – que nunca, jamais, em tempo algum aceitaram fazer justiça em crimes que envolvam violência ou coação sexual sobre mulheres (é preciso lembrar que há poucos anos um Tribunal da Relação mantinha pena suspensa para dois homens que violaram uma mulher inconsciente numa discoteca, descrevendo o crime como sem especial gravidade e em contexto de sedução mútua?) – é só uma forma sonsa e hipócrita de afirmar que se insiste em manter o assédio impune e a correr livremente estragando a vida e as profissões das mulheres. Afinal, os agressores teriam sempre a medalha de não serem condenados, com sorte acompanhados de tiradas insultuosas que os juízes portugueses amiúde fazem sobre as vítimas dos crimes para justificarem absolvições.
E a presunção de inocência? Bem, a presunção de inocência, já escrevi detalhadamente aqui a propósito do caso Ronaldo, é um mecanismo jurídico que garante que ninguém é condenado sem provas sólidas, tenha cometido o crime ou não. A presunção de inocência não garante que ninguém é inocente, simplesmente garante que tem acesso àquilo que os americanos chamam de due process. Uma investigação e um julgamento justo, digamos assim. A presunção de inocência não obriga nenhum de nós a não formar a sua convicção ética sobre um assunto ou um comportamento, reprovando-o e considerando-o como daninho para a vida em comunidade. Podemos perfeitamente acreditar que alguém teve atos criminosos ou desprovidos de ética para uma mulher, aceitando que as provas não são suficientes (tendo em conta os enviesamentos dos sistemas de justiça) para um tribunal o condenar a uma sanção.
O Me Too não tem que ver com presunção de inocência. Nem com capacidade de provar em tribunal um assédio. Tem que ver com mulheres contando a sua história, procurando solidariedade da comunidade. E tem que ver com a censura social que merecidamente se deve oferecer aos assediadores. Donde, o Me Too não necessita de ter os espartilhos dos tribunais enfaticamente ineficientes em se tratando de punir crimes contra mulheres. Basta aferir se as histórias são ou não credíveis – sabendo-se, como se sabe, o contexto de assédio impune que há pelo mundo desenvolvido e por desenvolver.
Afinal, a verdade não existe só no que é determinado nas sentenças de um tribunal – onde frequentemente ficam por punir crimes que não se conseguem provar. A verdade pode existir num tuíte, num post de facebook ou de instagram, numa entrevista para um órgão de comunicação social, num livro, numa reportagem televisiva.