A presunção de inocência é um conceito jurídico que não isenta ninguém da avaliação ética e moral dos factos

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Imagem do filme Os Acusados.

Um dos argumentos mais miseráveis que se ouvem no caso da acusação de violação de Cristiano Ronaldo a Mayorga é o da presunção de inocência. Segundo esta argumentação, até Ronaldo ser condenado não podemos julgar que ele de facto violou a rapariga em Las Vegas. Bom, caríssimos, isto é uma treta usada por pessoas que desvalorizam a violência sexual usada contra mulheres e querem, explicita ou implicitamente, defender um muito provável agressor. Vejamos.

1. A presunção de inocência é um conceito jurídico que garante que ninguém é condenado sem que sejam apresentadas em tribunal provas além da dúvida razoável. Porque se as pessoas forem condenadas, existem penas e podem ser pesadas. Os sistemas jurídicos estão preparados para serem exigentes com a prova e prefere-se, assumidamente, que culpados sejam considerados como inocentes (ou não culpados), que inocentes sejam condenados. A presunção de inocência não é nada que indique que alguém agiu bem ou mal, se cometeu crimes ou não.

2. A verdade existe e ocorreu como ocorreu. Não são decisões judiciais que a alteram (de resto podem existir nas várias hierarquias de tribunais decisões opostas; a verdade e os factos alteram-se ao sabor das decisões de cada tribunal?). Um homem violou uma mulher ou não violou, independentemente de isso poder ser provado em tribunal, segundo as regras apertadas próprias de quem dá penas. Uma pessoa foi corrupta ou não foi, independentemente de isso poder ser provado em tribunal. Há crimes que são de difícil prova – ou que as legislações tornam de difícil prova – mas tal não implica que não ocorreram. Significa simplesmente que a prova é difícil. A maioria das coisas que nos acontecem na vida (sejam crimes ou não) são impossíveis de provar em tribunal – porque não houve testemunhas, porque são eventos acontecidos entre pessoas que não cuidam de gravar tudo o que se passa com elas, porque as versões são contraditórias, porque a prova existente é testemunhal e os tribunais desvalorizam-na, porque os juízes não têm preparação para lidar com vítimas de certos crimes e não entendem os seus comportamentos, porque a memória traumática não é uma memória linear e jornalística, etc. etc. etc. – mas isso não significa que não existiram. Qualquer pessoa medianamente inteligente reconhece isto. Pelo que usar o que é suscetível de ser provado em tribunal como critério para a verdade – em vez de critério para o que pode levar sanções pesadas da sociedade – é simplesmente desonestidade intelectual.

3. Há muitas formas de contar a verdade. A verdade pode ser contada em livros, em peças jornalísticas, em conversas com amigos, em comissões parlamentares, em programas de televisão, em pesquisas científicas. Uma pessoa que considera que a verdade que existe é só a que o tribunal decide que sim além da dúvida razoável, bem, é uma pessoa severamente limitada.

4. Há, toda a gente sabe, sentenças de tribunais erradas. Há condenados que o foram injustamente (só para dar um exemplo: lembram-se dos irlandeses do Bloody Sunday? houve um filme catita, In The Name of the Father, sobre este caso. Já ouviram falar no processo Dreyfus?). Há pouco tempo em Portugal tivemos vários casos de absolvições ou de penas suspensas para casos de violações ou de violência doméstica. Alguém com um resquício de ética pode argumentar que os tribunais decidem sempre bem?

5. Toda a gente tem a obrigação, em se tratando de crimes graves, de formar a sua opinião sobre o que ocorreu. É uma tremenda cobardia esconderem-se atrás da presunção de inocência. Podemos – e devemos – informar-nos sobre os contornos dos factos e da realidade para formarmos a nossa opinião sobre o que aconteceu ou não. Só gente sem vontade própria e com gosto por fascismos intelectuais (ou que usa a presunção de inocência como subterfúgio para não acusar um agressor sexual ou um corrupto) é que pode dizer que espera pelos tribunais para saber a verdade.

6. O que digo para o caso Ronaldo-Mayorga é exatamente o que disse para a acusação de corrupção a Sócrates. Sabe-se lá se se consegue condenar judicialmente. Mas toda a gente tem a obrigação de se informar e tirar as suas conclusões, independentemente do que os tribunais provarem e decretarem.

7. No caso Ronaldo, sabemos muita coisa. Que Mayorga tem uma história credível e que se coaduna com o comportamento das vítimas de crimes sexuais. Que ele lhe pagou para ficar calada. Que ela lhe enviou uma carta reafirmando a sua história. Que ela sofreu lesões no ânus, algo que dificilmente sucede em relações consentidas. Que CR em resposta por mail aos advogados, divulgado pelos football leaks, reconheceu que ela não queria ter sexo (que é em si mesmo uma confissão de ter violado). Que CR não tem facilitado ser notificado para contestar o processo que Mayorga lhe colocou – e que foi agora recolocado num tribunal federal (estava num tribunal estadual) – o que é comportamento estranho de quem quer provar inocência.

8. Sabemos ainda mais. As acusações falsas de violação são casos extremamente raros, ao contrário do folclore dito pelos misóginos. Mulheres que acusam homens poderosos, levando com o abuso todo que isso acarreta, serão ainda mais raras. Já as violações que ficam sem queixa junto das autoridades são a maioria. Só menos de um terço das violações que acontecem são reportadas às autoridades – não são grupos de feministas que dizem, são as autoridades americanas. As que conduzem a acusações são ainda menos. E as que levam a condenações são menos de dez por cento das violações efetivamente ocorridas. Estes são dados e estatísticas conhecidas. Pelo que estatisticamente erramos sempre menos se acreditarmos em que faz acusações de violação do que acreditarmos em quem é acusado. Não há volta a dar a isto.

9. Não sendo jurista, não tenho resposta para o que se pode alterar no sistema judicial para tratar melhor as vítimas de certos tipos de crime – além de valorizar as histórias credíveis e usar perícias psicológicas para ajudar a apurar a verdade, em vez de critérios idiotas como provas de testemunhos de terceiros, confissões ou quejandos que, evidentemente, não existem nos crimes sexuais (e nos outros também não). Mas sei que fora dos tribunais podemos reconhecer que a maioria das pessoas está a julgar e a condenar as vítimas dos crimes sexuais, em vez de julgar e condenar, pelo menos socialmente, os agressores. E que este comportamento é miserável e, em, si mesmo, merecedor de julgamento ético pelas pessoas de bem. Não há desculpa para, perante uma história credível de violência sexual, não tratarmos a vítima com, pelo menos, respeito e fornecendo-lhe o benefício da dúvida. As estatísticas garantem que estaremos mais certos que se defendermos o acusado. Quem sai fora disto, lamento, mas está a fazer apologia e defesa de violência sexual e a estrebuchar para manter a sua impunidade na sociedade. E querem garantir que as vítimas de violação continuem caladas, para não levarem com a lama da sociedade. Ponto.

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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