
The Loudest Voice, a série televisiva que se pode ver na HBO, sobre Roger Ailes e a sua criação, o canal Fox News, é um retrato do mundo que ninguém deve perder. Não só por exibir o que é um assediador e um agressor sexual compulsivo – Ailes terminou demitido da Fox depois de acusações muito badaladas de assédios e abusos sexuais continuados e generalizados – mas também o que é a ideologia atual do partido republicano (que, de resto, Ailes ajudou a definir): além de isenção de escrúpulos completa na atividade política, há uma misoginia e até uma deliberada humilhação do sexo feminino como pilar estruturante ideológico. Algo que bem se vê, parecido, na atuação de Donald Trump – o expoente máximo das ideias e dos métodos políticos preconizados por Roger Ailes.
Ailes é claramente um homem que odeia mulheres: via-as como objetos para usar/abusar sexualmente e para torturar psicologicamente e profissionalmente. A história dos assédios é sobejamente conhecida. Porém, o que mais incomoda nos sete episódios de The Loudest Voice é a forma como esses assédios encaixam – e se tornam sintomas não só inevitáveis como mesmo procurados – no mundo que Roger Ailes quis criar.
É um mundo verdadeiramente alienado, distópico, onde os canalhas e as canalhices imperam. Os objetivos de Roger Ailes – para uma estação de notícias, recorde-se, e onde trabalham jornalistas – estavam a milhas de preocupações de informar a população, oferecer a verdade possível, escrutinar o poder. Antes, centravam-se em ganhar dinheiro, aumentar as audiências, radicalizar os seus espetadores, apelar aos seus instintos mais grunhos e cavernícolas, atacar de forma descontrolada os democratas, os estilos de vida urbanos e modernos e ideias políticas como a distribuição de riqueza ou cuidados de saúde universais. O ódio de Ailes à esquerda americana raia a loucura, mas é bem credível porque o vemos todos os dias nos setores trumpistas e nas novas direitas mundiais, inclusive a portuguesa. Tudo é apresentado, histericamente, como socialismo ou comunismo. E a maligna esquerda, os maldosos democratas ou os aleivosos Clinton são apresentados como as causas do que de mal acontece debaixo do sol – incluindo, claro, a investigação aos assédios de Ailes. O espírito persecutório e conspirativo de Ailes não tem limites: os adversários são demónios absolutos que precisam de ser esmagados.
Para conseguir tudo isto, Ailes desinforma, espalha mentiras através da Fox News, deturpa factos, difunde informações cuja aderência à realidade é mera coincidência. A estação televisiva é um instrumento de fazer política – baixa – sem qualquer intenção de fornecer jornalismo e verdade a quem lhe dá audiência. (No que permanece. O nível de desinformação da Fox News sobre a pandemia de covid está num nível que já passou a criminoso.)
Este mundo que Ailes quer criar é, evidentemente, um mundo de supremacia masculina. As mulheres servem para entreter as vistas dos homens e para sexo. O mundo é para ser comandado por homens como Ailes: vingativo, mesquinho, mau, paranóico. Muito embora, claro, todos os abusos venham embrulhado numa retórica muito cristã, de grandes valores familiares, de um conservadorismo muito moralista. É um bom retrato das novas direitas atuais: querem fazer-nos acreditar na corrupção moral dos adversários enquanto pagam a atrizes pornográficas para não falarem dos encontros sexuais, apalpam e beijam mulheres sem consentimento, forçam sexo. (Lembram-se de Trump, certo?)
Portanto, sim, The Loudest Voice não retrata só os assédios sexuais de Roger Ailes. Retrata o mundo que explora sexualmente e humilha mulheres, explica a conivência de todo um meio com comportamentos de exploração de mulheres, explica os mecanismos que se usam para calar mulheres – incluindo os infames non disclosure agreements que pululam pela série televisiva, pelas pessoas que rodeiam Trump e pelo resto do mundo misógino. E retrata a paranóia da direita alt right, com a sua ausência de escrúpulos, o uso indiscriminado de mentiras, de golpes, de desinformação, de radicalização.
É um incomodativo mas voraz retrato do mundo que teve como expoente a presidência de Donald Trump. Que, se os deuses ajudarem, termina a 20 de janeiro de 2021.
Imagem em https://time.com/5615609/the-loudest-voice-showtime-review-roger-ailes-show/.