Não, as atividades perigosas e desagradáveis não são todas feitas por homens

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Uma das mais tontas linhas de argumentação dos seres sexistas quando reclamamos da representação das mulheres em lugares de topo e de decisão é esta: ah pois, querem ser chefes nas empresas, querem lugares políticos, onde estão só homens, mas só querem o bem bom, não querem ir para os trabalhos desagradáveis e perigosos que também são desempenhados pelos homens.

Esta linha de argumentação tem duas correntes de malícia e má intenção. Uma, a de colocar as mulheres recusando-se às tarefas penosas (desempenhadas no masculino, dizem) mas pretendendo aceder às tarefas mais recompensadoras (também ocupadas no masculino, aqui sem qualquer dúvida). Como se os cargos de chefia e mais atraentes fossem a recompensa dos homens por também ocuparem as profissões de servente de construção civil e de mineiros. (Tenho a certeza que um mineiro fica todo satisfeito, enquanto respira minérios venenosos, por outro homem estar num escritório a insultar feministas em modo de compensação cósmica pela sua ocupação subterrânea – mas, enfim, os homens sexistas também não são conhecidos por serem dotados de empatia.)

Outra: a de justificar os salários mais altos dos homens. Ganham mais porque também se dedicam a atividades perigosas e prejudiciais para a saúde, recebendo por isso uma compensação por esses malefícios no ordenado.

Bom, tenho uma novidade: não, as atividades mais desagradáveis e perigosas não são desempenhadas pelos homens. São desempenhadas igualmente pelas mulheres. Helena Tender já aqui explicou – com desenho e números – que a ocupação mais perigosa e mortífera é a prostituição, sendo que as pessoas que se prostituem são na esmagadora maioria mulheres. Donde, a atividade mais perigosa e mortal é feminina.

Mas não precisamos de chegar sequer à prostituição. Ficando nas atividades dentro do arco da dignidade humana, podemos por exemplo referir as pessoas que trabalham em limpezas, que são quase exclusivamente mulheres por todo o mundo. E se o trabalho doméstico em casas particulares até pode ser uma ocupação bem paga dentro das alternativas disponíveis para pessoas pouco escolarizadas, com conhecimento deficiente da língua, sem grande experiência profissional fora dos trabalhos domésticos – em Portugal, é, ainda que tenha uma grande precariedade -, já as limpezas em escritórios, fábricas, lojas, centros comerciais, hotéis, hospitais,… são geralmente trabalho para salário mínimo ou pouco mais.

E não, limpar retretes de casas de banho públicas não é ocupação agradável.

Além de desagradável, trabalhar continuamente com os químicos dos detergentes tem consequências negativas para a saúde, danificando sobretudo os pulmões. Um estudo que agrupou um número considerável de académicos de várias universidades europeias concluiu que as mulheres que regularmente fazem limpezas têm uma maior propensão para ter asma que as mulheres que não fazem, e que o contacto continuado com os químicos dos detergentes têm um efeito na degradação pulmonar semelhante a fumar vinte pacotes de cigarros por ano (um pouco mais de um cigarro por dia, em média).

Este estudo avaliou a capacidade pulmonar, pelas partículas que se respiram. Ficam por avaliar efeitos que o contacto com os químicos dos detergentes têm na pele e noutros órgãos.

Trabalhar em limpezas, além de desagradável, tem efeitos perniciosos para a saúde, que ao fim de anos cumulativamente se notam. Não há muita pesquisa sobre este assunto mas, bem, já aqui referi que há um grande gap nas pesquisa relacionadas com saúde em mulheres. Somos invisíveis também aqui, como bem nota Caroline Criado Perez. É uma atividade sobretudo feminina, donde é menos investigada.

Fora possibilidade de abusos patronais e assédios sexuais – que curiosamente, uma vez que não costumam afetar homens, não se contabilizam na hora de averiguar os perigos e características desagradáveis de cada ocupação. Ou outros riscos acrescidos, como queimaduras, quedas, lesões musculares de carregar pesos e fazer força excessiva.

Não penso que sejam úteis campeonatos de mortes, violência e danos para a saúde entre homens e mulheres, nem vejo qual a relevância de tal assunto para se reconhecer que as mulheres têm estado deliberadamente arredadas das posições de poder, das chefias das empresas e dos cargos políticos – apesar de, quando se estabelecem mecanismos de quotas, se verificar que as mulheres são qualificadas (muitas vezes mais qualificadas que os colegas homens) e trazem melhorias às organizações. Donde, não era por falta de mulheres com mérito que não eram escolhidas. Tampouco faz sentido comparar uma sub representação feminina em atividades que envolvem necessidade de força física com atividades intelectuais ou criativas, sendo que as xx não ficam aquém em QI ou originalidade. Só poeira, portanto.

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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