Muito se fala da dimensão das disparidades salariais entre homens e mulheres – em Portugal, entre 16% e 17%. De como as disparidades aumentam em se tratando de trabalhos mais intelectualizados e menos braçais – ao contrário de toda a argumentação dos grunhos alt right, que juram que grande parte das disparidades salariais se devem aos homens que ficam com os trabalhos braçais fisicamente mais exigentes e mais perigosos. Enquanto nos trabalhos indiferenciados a disparidade salarial é de 12%, nos quadros superiores já alcança 26%. Isto apesar de as mulheres serem crescentemente mais qualificadas. Um bom retrato da situação portuguesa é este da FFMS.
A causa das diferenças salariais está estabelecida: a convicção entranhada de que as mulheres são menos capazes que os homens e que é a ordem natural das coisas ganharem menos e não estarem nas posições cimeiras. Repetidamente a prestação profissional das mulheres é subavaliada, a dos homens sobreavaliada. Há resistência a ver ainda mulheres em lugares cimeiros de chefia, os estereótipos de um líder estão colados às características masculinas. Em resultado, não se aumentam tanto os ordenados das mulheres (e uma negociação forte feminina não é bem vista), não se lhes atribuem tantos prémios de produtividade (mesmo quando produzem mais), não se promovem tanto as mulheres. Mostra a pesquisa científica, mostram as estatísticas, mostram os casos de amigas e conhecidas que todos temos, que nos contam como foram preteridas nas promoções ‘porque és mulher e o teu marido ganha bem, o X é o sustento da família dele’, como ganham menos que os colegas homens por razões científicas como ‘eles têm mais pulso’ (mas não mais receitas criadas) e por aí adiante.
Não tão falados são os efeitos que estes menores salários têm na vida das mulheres. Porque as centenas de euros que as mulheres ganham a menos que os homens têm impacto nas suas vidas. Não são meras abstrações numéricas ou estatísticas.
Como toda a gente percebe intuitivamente, um maior nível de rendimento está associado a um maior bem estar e a um leque mais alargado de escolhas; no fundo, a um acrescido acesso a graus de liberdade e a bens e produtos essenciais para uma vida com conforto. (Ainda que as mulheres não tenham somente de aspirar a uma vida com conforto básico.)
Uma mulher com maior rendimento pode cuidar mais de si (ginásios, cabeleireiro, guarda-roupa, esse engenho infalível para melhorar a autoestima que é o batom) e pode investir mais em si própria (educação de todos os níveis, cursos, viagens), o que lhe permite almejar ainda mais profissionalmente ou em termos de crescimento pessoal. Uma mulher com rendimentos espartilhados à conta da avaliação preconceituosa do chefe ou patrão é uma mulher obrigada a investir menos em si própria; donde, também terá menores retornos.
Uma mulher com maior rendimento é uma mulher que com mais facilidade pode decidir não continuar uma relação ou um casamento infeliz ou mesmo patológico. Uma mulher que não se consiga sustentar a si e aos seus filhos é uma mulher à mercê de companheiros e maridos tóxicos ou mesmo violentos. Não tem rendimentos suficientes para pagar uma renda de casa sozinha nem para sustentar os filhos (quando os há).
Uma mulher que ganhe mais é uma mulher com maior capacidade de investir nos filhos, pode pagar-lhes atividades, explicadores, desportos, línguas estrangeiras, atividades artísticas (que são tão importantes). Não esqueçamos que há uma ligação muito direta entre o sucesso escolar dos filhos e as qualificações e o nível socio-económico das mães. Uma mulher com rendimentos empurrados para baixo por causa das disparidades salariais é uma mulher que não conseguirá explorar tantas valências dos filhos.
Uma mulher que tenha ordenados mais baixos porque é mulher, será uma pensionista que terá uma reforma mais baixa e, logo, estará em maior risco de, de súbito, estar numa situação de pobreza. A pobreza atinge mais as mulheres e crianças que os homens, e esta discriminação salarial está entre uma das causas (pelo menos no mundo ocidental) para essas estatisticas de travo amargo.
Por falar em pobreza, em Portugal, 87% das famílias monoparentais são famílias em que os filhos vivem com as mães. Em 2018 esta percentagem representava cerca de 400.000 famílias. Temos também um problema grave de incumprimento pelos pais das prestações de alimentos (ajudado pelo sempre calamitoso estado dos tribunais). Ora disparidades salariais que encolhem os ordenados das mulheres são uma realidade que constrange a vida de 400.000 famílias que dependem grandemente dos rendimentos das mulheres. E que pode colocar famílias em situações de pobreza ou aperto finaceiro. As disparidades salariais que alvejam mulheres são atentados diretos a quatrocentas mil famílias portuguesas.
As disparidades salariais, com os consequentes menores rendimentos das mulheres, têm estas grandes consequências: maior risco de pobreza, das mulheres e dos filhos; maior vulnerabilidade a relações infelizes, tóxicas ou violentas; menor capacidade de autoinvestimento e, logo, menor possibilidade de realização profissional e pessoal. Isto, claro, além de questões de autoestima, de azedume por verem homens com mérito igual ou mesmo menor serem escolhidos e aumentados e promovidos, de sonhos exterminados.
As disparidades salariais entre homens e mulheres não são uma excentricidade económica. São um atropelo aos direitos e à procura da felicidade de metade da população.