Talvez depois de termos tido durante várias décadas um país comunista e ditatorial que se chamava República Democrática Alemã (era a Alemanha de Leste), e que, enfim, dava todo um novo significado à palavra ‘democrática’, talvez não nos devêssemos espantar por termos um partido que se chama Iniciativa Liberal que se tem distinguido por fazer ataques constantes às liberdades já conquistadas pelas mulheres.
Deixemos por agora de lado as obsessões anti quotas que os seus membros demonstram quase todas as santas horas do dia, da hostilidade que vem daquele partido a qualquer reivindicação feminista (participação política, participação nas empresas nos cargos de decisão, igualdade salarial, creches e jardins de infância gratuitos ou muito acessíveis,…). Esqueçamos, hoje, que o presidente da IL é um denier do gender wage gap – considera que as diferenças salariais existentes ocorrem todas por causas inteiramente justas e economicamente justificáveis. Irei lá antes das eleições.
Detenhamo-nos nas maravilhas que dois candidatos da IL defendem. O candidato da IL às eleições europeias foi um senhor que chegou a fazer a mui liberal proposta de por o estado a pagar às mulheres para ficarem em casa a cuidar dos filhos. Isso. A IL é um partido muito contra o despesismo estatal, evidente – mas uma despesa estatal que vê com bons olhos é o estado gastar dinheiro para as mulheres saírem do mercado de trabalho, pararem de fazer concorrência aos homens e deixarem os empregos todos para os homens. Adoram o estado mínimo, mas escolhem um candidato que promove o funcionalismo público da maternidade.
Ora não contentes por terem apresentado nas europeias um candidato que têm esta visão ‘liberal’ da maternidade ali à moda dos anos 1950 – que o partido apoia, ou não escolheria tal candidato, e, de resto, no seu programa eleitoral lá constavam as diferenças biológicas entre homens e mulheres como justificativas do status quo (reconhecem a narrativa?) – escolheram agora um candidato que não gosta da política pública das licenças de maternidade pagas.
Há um ano e alguns meses fui convidada para um debate sobre Feminismo e Liberalismo numa instituição ‘liberal’ (daquelas profundamente reacionárias que endeusam os mercados sobretudo na sua capacidade de produzirem darwinismo social), manhosa, e que aceitei apenas pela ligação que tinha a um dos membros da infeliz coisa. Disse debate? Quer dizer, se considerarmos um debate uma coisa onde a outra pessoa – uma senhora que por acaso (ou não) também fez parte da lista das europeias da IL – não tinha absolutamente nenhuma informação sobre o tema ‘feminismo’ e usava a falta de informação para dizer todos os disparates do costume culpabilizadores das mulheres. Falta de participação política? Ora, por que razão as mulheres não estão nos partidos? (Estão, em Portugal os partidos políticos são muito paritários em termos de militantes; sucede que as militantes nunca são escolhidas para saírem das bases.) Por que razão não criam partidos? (Nunca ouviu falar certamente das altas barreiras à entrada de novos partidos que temos.) Desigualdade salarial? As mulheres se calhar não negoceiam ordenados tanto quanto os homens. (Suspiro e revirar de olhos.) Quotas? As escolhas das mulheres é que determinam que não estejam em certos cargos. Tudo nesta linha.
A assistência do ‘debate’, então, composta pelos habituais da tal instituição, foi de índole de causar stress pós traumático. E convenceu-me, de uma vez por todas, da inutilidade de debater com certas pessoas. Não há conversa com quem não reconhece noutros a dignidade que todos os seres humanos possuem. Fizeram o argumento ultra imbecil de usarem os mineiros serem homens para justificarem que as mulheres não devem ter acesso aos trabalhos de topo (que não exigem trabalho braçal que requeira força física, pelo que enfim). O conceito de licença de maternidade pago pelo estado às mulheres era uma coisa exótica; os tempos sem trabalhar deviam, claro, ficar a cargo dos pais da criança (ou do pai, como às tantas um disse, porque claro que o pai é o sustento da casa para estas boas almas). Os direitos das mulheres já alcançados deviam ser diminuídos para satisfazermos os imigrantes conservadores que vêm para a Europa. Um rapazola que vi mais tarde nuns cartazes da IL disse-me – com o argumento infalível de que poucas mulheres tinham acorrido àquele debate de uma instituição manhosa (e hostil às mulheres) que ninguém conhece -, e com ar zangado, que ‘as mulheres não se interessam por política’.
Bom, o moderador deste ‘debate’ sobre ‘Feminismo e Liberalismo’ era o atual cabeça de lista da IL por Leiria. Às tantas, no ‘debate’, argumentei que a licença de maternidade paga pelo estado era um exemplo de política e de intervenção do estado, e até de colheita de impostos, que aumenta grandemente a liberdade das mulheres – porque permite ter filhos sem desistir da carreira profissional, porque não obriga à escolha entre maternidade ou profissão, uma vez que muito pouca gente tem possibilidade de se sustentar durante vários meses sem receber ordenado. Logo, alarga o leque de escolha e, donde, a liberdade das mulheres. Não fora a licença de maternidade paga pelo estado, seria muito mais difícil para as mulheres conseguirem ter filhos – uma vez que sempre se precisam de sustentar. Dilema que, claro, não recai sobre os homens. Pelo que a não existência de licença de maternidade paga é a institucionalização de um desequilíbrio no mercado de trabalho em favor dos homens.
Tudo isto parece-me muito evidente. Tanto, que licença de maternidade paga é uma política que só os Estados Unidos, Papua Nova Guiné e outras soberanias microscópicas não têm. Até podemos deixar de fora o facto de nascerem crianças ser um benefício para toda a sociedade, incluindo económico, e que as mulheres mesmo com os direitos atuais estão a suportar os custos relacionados com a maternidade enquanto a comunidade recebe os benefícios – o que não é estado de coisas que se aceite manter.
Ora o moderador, agora cabeça de lista da IL, fez questão de referir que a licença de maternidade paga retirava liberdade porque implicava cobrar impostos para a financiar e isso era problemático.
Portanto, caríssimas e caríssimos, estamos assim. Temos, julgo que pela primeira vez, um candidato à Assembleia da República que não concorda e não vê imediatos benefícios neste mais basilar direito das mulheres que é a licença de maternidade paga. Passemos ao lado de questões de natalidade – sem licença de maternidade teríamos menos bebés. (Apesar de esta questão não ser de somenos, muito pelo contrário. De facto, nada garante que quem se envolve na política seja um ser pensante e consiga ter uma capacidade de análise abrangente e ponderar consequências das ações em várias áreas. Há quem esteja limitado à esfera da economia – à maneira dos maus economistas, sem perceber que a Economia também não trata só dos agregados de contas públicas e dos mercados, mas de toda a panóplia das decisões humanas.) Ou a eugenia social que seria apenas permitir a maternidade àqueles casais com recursos para sustentar uma mulher e um bebé durante os meses em que a mulher estaria sem ordenado.
Mas é isto. Existe um candidato da IL que vê mal a segurança das mulheres de receberem mensalmente um cheque da Segurança Social enquanto estiverem de licença de maternidade, podendo, desta forma, serem mães sem passarem fome nem perderem o emprego ao qual regressam ao fim de alguns meses. Uma política que permite a uma mulher não ter de poupar anos intermináveis uma pequena parte do seu escasso ordenado (em Portugal são quase todos escassos) para poder ter, no máximo, um filho. Um direito elementar que não obriga uma mulher escolher ou a maternidade ou a profissão. Uma liberdade estatalmente garantida que pretende igualizar tanto quanto possível a situação profissional de um homem e de uma mulher quando têm filhos.
Depois do candidato da IL que queria ter as mães tornadas funcionárias públicas e fora do mercado de trabalho, temos agora o candidato que é ainda pior: quer que as mulheres sejam mães sem receber absolutamente nada do estado. O caminho da decência é exigir que os custos profissionais que as mães ainda encontram (penalização no ordenado por cada filho, discriminações várias) sejam minorados e extintos. Mas a IL apresenta um candidato assim.
Quando votarem, é recordarem-se destas lindas posições ideológicas dos candidatos de um partido. Para mim, não há nenhum partido que atente na mesma magnitude contra a minha liberdade de ser humano, que calha ser mulher, como a Iniciativa (I)liberal. Bom, talvez o PCP e o Chega.