A propósito de recorrentes, às vezes quiçá involuntárias, associações entre a maternidade e as diferenças salariais, temos sempre de bater o pé e lembrar que não, a maternidade não é ‘A’ causa do wage gap entre homens e mulheres. Este é o argumento preferido dos conservadores, com a sua chantagem maldosa de sempre. Se uma mulher quer ganhar como um homem, bem, tem de abdicar da maternidade (ou, pelo menos, de gastar tempo a cuidar dos filhos). Se quer ser mãe e viver essa experiência cuidando de doenças, falando com os professores, não faltando às festas da escola, trocando um bom número de fraldas e por aí adiante (dividindo ou não as tarefas com o progenitor masculino), então que aceite que não pode estar no mesmo nível que os homens, que não perdem tempo com estes tédios que as crianças proporcionam. Mais: então onde já se viu uma mãe assim tão ambiciosa, que em vez de se preocupar só com a felicidade dos seus petizes ainda continua a querer ser promovida e ganhar mais. Ah, mulher desnaturada que não sabe a ordem natural das coisas.
Colocar sempre tudo de modo a que as mulheres sejam obrigadas a escolher. Na verdade, como se as mulheres, ao contrário dos homens, não tivessem direito a todas as vivências sem pagar custos desmedidos. Não, garante a mensagem, nós estamos a usurpar cargos e rendimentos, pelo que é bom que vejamos que, se um bocado nos é permitido, ainda não podemos ter tudo. Noutro sentido, há que jogar com as características tradicionais que agradam nas mulheres. Há que desconsiderar socialmente a ambição feminina – sobretudo de uma mãe, que só deve ser ambiciosa para os seus rebentos – para dissuadir o mulherio de exibir tão repelente traço de personalidade.
Bom, em primeiro lugar este argumento de associar maternidade e o papel de cuidadora com salários mais baixos é tóxico para mulheres que não façam parte de um casal heterossexual ou que não tenham um pai, divorciado ou nem sequer casado mas empenhado, que partilhe as tarefas com os filhos. Com esta associação, diz-se a uma mãe que é a única figura parental do seu filho, ou porque o pai não existe (por exemplo com a fertilidade medicamente assistida) ou porque não quer ver o petiz nem sequer em fins de semana alternados, que, olha, má sorte, ganhas menos que os homens pelo mesmo trabalho e mesma qualidade e paciência, que afinal quem te paga menos está cheio de razão.
O problema não se esgota aqui, no determinismo fatalista de que uma mãe sozinha merece ganhar menos que os homens. O maior erro é dar de barato que afinal empregadores (os que o fazem) têm toda a razão para pagar menos às mulheres se estas têm filhos. Isto é legitimar a diferença salarial. É permitir que todos os clichés sobre a capacidade profissional das mães persistam, que se trate a maternidade como uma deficiência que impede as mulheres de usarem as capacidades que antes usufruíam, que se exacerbem os custos de uma situação que, em boa verdade, a ter custos são negligenciáveis – e mais que cobertos com as novas skills que todas as mães (e pais) adquirem. Entre elas: gestão de tempo, definição de prioridades, rapidez de concretização, simplificação de problemas, capacidade de resolução de crises e um longo etc.
Evidentemente que a via a seguir é a oposta. Explicar que uma mulher pode perfeitamente estar em casa com o filho doente e estar no computador a trabalhar. (A quantidade de dias que eu fiz isto mesmo.) E, como há meses me dizia uma amiga dona de uma agência de publicidade, essa mulher é muito mais produtiva assim, porque está descansada a vigiar o filho, do que se estivesse no escritório em sobressalto com o estado da doença da criança. Usar a lógica e mostrar que estar uns poucos meses parada quando nasce uma criança é irrelevante numa carreira profissional de décadas – e quem afirmar o contrário só pode ser mal intencionado. Exibir a investigação científica que mostra que existe um preconceito com as mães que trabalham, assumindo à partida que estão desinteressadas da profissão – deixo aqui um artigo sobre um paper que evidencia como os homens são mais bem vistos quando pedem flexibilidade por questões familiares, enquanto as mulheres são penalizadas. Ou que se valorizam menos bem as estratégias das mulheres para flexibilizar o trabalho. (Claro que é importante a relação pessoal e quem está longe da vista termina muitas vezes esquecido. As mães têm de ter isso em consideração nas suas estratégias para flexibilizar o tempo de trabalho. Em todo o caso, continua o padrão de se atribuir maior custo à estratégia que as mulheres seguem.) Relevar os contributos que a maternidade tem para a produtividade das mulheres (já referi alguns acima).
Temos de reivindicar que sejam os resultados a serem avaliados (e mesmo estes nunca escapam ao bias anti feminino, como aqui já argumentei) em vez da quantidade dos tempos de trabalho e os processos.
E como diz Mary Beard em As Mulheres e o Poder, Um Manifesto, sobre o poder mas podia ser sobre as decisões de ordenado para homens e para mulheres, se as estruturas penalizam as mulheres, então são as estruturas que excluem metade da população que estão erradas e precisam de ser alteradas. Não são as mulheres que têm de deixar de ser mães para ganharem tanto quanto os homens para trabalho igual.
Por tudo o que a Maria João escreveu, fico na mesma: é preciso igualdade entre os sexos!
Só quando os homens forem obrigados a estar de baixa de paternidade como as mulheres, e para ajudar verdadeiramente, é que esse efeito/causalidade/bias será mais que revertido.
Pensando racionalmente, é provável que até passem a ser os homens os prejudicados. A sério!! É que se as mulheres biologicamente não conseguem ter mais do que um filho por ano, já os homens… XD
Fora de brincadeiras, estou a perceber que há alguma experiência/vivência que experimentou/acompanhou que confirmam o que descreve. Acho que seria interessante desenvolver esse(s) relato(s), pois daria factos que enriquecem a racionalidade do leitor. É que o que descreve não se vê refletido facilmente por aí..
Atentamente e bem haja,
Um seu leitor