Já lá estive duas vezes, na Feira do Livro, este ano. Nunca falho pelo menos uma visita. A primeira fui sozinha. Entrei para a feira ao lado das barracas da Relógio D’Água (que deve ser a minha editora portuguesa preferida, com ótimos autores traduzidos em muito competentes traduções), vi lá umas tantas compras potenciais, mas, assisada, decidi deixar a Relógio D’Água para o final, que afinal iria regressar ao carro, provavelmente cheia de sacos, pelo mesmo sítio. Dei uma volta, evitando as praças dos grandes grupos editoriais (cujos formatos tipo grande livraria, com ponto de pagamento com direito a fila no meio daquelas fitas em ziguezague, me desgostam para feira do livro), pelas minhas editoras preferidas. Na Planeta os livros que me agradam já tinham sido comprados – Carla Macedo já aqui deixou a sugestão de As Longas Noites de Caxias, e acrescentamos o Preciosa, uma história de violência doméstica de base autobiográfica, de Nelson Nunes, e os divertidos livros de Ana Saragoça. Na Tinta da China, idem, e não havia promoções aliciantes. Não tive tempo para os alfarrabistas nem para as livrarias. Às tantas regressei à Relógio D’Água e fiz as despesas da primeira ida à feira por lá. Aproveitei três descontos daquele dia e comprei Cossacos, de Tolstoi, as Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (que Rodrigo Ferrão tão bem aqui nos escreveu) e Vidas de Raparigas e Mulheres, de Alice Munro. (Autora esta muito das minhas preferências, mesmo escrevendo sobretudo contos. Tem um talento apurado e delicado para contar as pequenas brutalidades do quotidiano das vidas normais. Este livro é o seu único romance. Ah, também já ganhou o Nobel da Literatura, mas essa é a sua característica menos interessante.)
Depois entretive-me com os livros a 5€ (e a 3€, mas destes não comprei nenhum) que estavam para escoamento de stock. Os Turgenev estão quase todos para serem descontinuados, pelo que comprei os que faltavam: Cadernos de Um Caçador (não, não é nenhum endorsement da caça, atividade que não me alicia) e Águas de Primavera. (A propósito: quem nunca leu O Primeiro Amor, de Turguenev na mesma editora, não sabe o que perde. É um livro maravilhoso sobre paixão e desejo. Sim, também sobre a moral desigual que penalizava as mulheres que não fugiam da tal paixão.) E Mulheres Excelentes, de Barbara Pym (não conhecia) e O Moinho à Beira do Floss, da magnífica George Eliot.
A seguir comprei uma fartura.
Na segunda ida, levei as crianças, pelo que andei ao sabor dos seus desejos (história da vida de uma mãe). Pelo caminho encontrei Pedro Boucherie Mendes a dar autógrafos e comprei-lhe o último livro, Ainda Bem que Ficou Desse Lado, fui dar-lhe um beijinho e receber uma dedicatória personalizada. Terminei a volta (ao vento e ao frio, refira-se, foi quase uma epopeia grega que culminou numa amigdalite no dia seguinte) comprando na Editora Minerva um velhinho Como Eu Vejo a China, um conjunto de textos sobre (surpresa!) a China, de Pearl S. Buck, uma edição à antiga, com as folhas dobradas e sem as dobras cortadas, à espera que uma espátula para abrir cartas (ou um x-ato) vá separar as páginas umas das outras. Pearl S. Buck é uma escritora bem comportada (também prémio Nobel), o que lhe li mais picante foi um romance em que uma viúva tinha de escolher entre o amor de um homem mais velho e a paixão de um homem mais novo, mas viveu na China, escreveu sobre a China (e muito bem) e mesmo datados os textos serão de leitura prazenteira.
Muitos livros de mulheres – que é como deve ser. Sou uma feroz defensora da necessidade das mulheres serem agentes ativas na hora de contar as histórias de mulheres (que costumam ser contadas do ponto de vista masculino, que é interessante e válido mas não pode ser o único), e histórias de homens, e de apresentar as perspetivas femininas sobre a realidade, as histórias que nos interpelam, os pormenores que achamos curiosos. O mundo é feito de diversidade, os consumidores de literatura são diversos, e é saudável e natural que todos, feminino e masculino (e branco e negro e amarelo, e hetero e gay) estejam representados na produção de histórias (sob os mais diversos suportes e formas). A inclusão é sempre benéfica em si mesma.
Não protesto pelos carros com comida. Sempre houve na Feira do Livro (o algodão doce, as pipocas, as farturas, as regueifas, as queijadas). É bom que as realidades mudem, melhorem e se adaptem aos novos tempos. E se, num país em que 40% da população não lê nem um livro por ano, a animação da Feira do Livro os levar lá e comprarem e lerem alguma coisa (mesmo que uma xaropada daquelas produzidas em linhas de montagem por ‘escritores’ – ataque de tosse – que terminam 1,2 livros por casa semana do ano), será uma melhoria.