O novo livro de Ana Cristina Silva apresenta-se como um romance. ‘As longas noites de Caxias’ acaba de ser lançado pela Planeta em cima da data que assinala, também, o fim da tortura avalizada pelo Estado português, nas prisões do País. Apesar de ser um romance, a autora avisa numa nota lateral que o texto se baseia “em factos verídicos. No entanto, nomes e situações foram ficcionados”.
Ana Cristina Silva compõe a narrativa em torno de duas mulheres: Laura é quem nos aparece primeiro, no momento da sua captura pela PIDE, e aos olhos desta personagem e dos leitores vai surgindo sub-reptícia Leninha, a agente da Polícia de Internacional e Defesa do Estado, cada vez mais forte, cada vez mais hedionda.
A tortura é explanada no romance e esta versão ficcionada corresponde aquilo que vemos e ouvimos descrito em filmes documentais como os de Susana Sousa Dias, em visitas a prisões musealizadas como Peniche ou o Tarrafal, como ainda se escuta de viva voz dos dissidentes das ditaduras – a portuguesa, a brasileira, a espanhola. A prisoneira Laura foi ameaçada, insultada, despida para ser humilhada, colocada numa cela solitária dias a fio, espancada.
“Laura tinha feito frente ao agente, provocara-o, e ele estava furioso. Deu-lhe dois murros na cara e depois agarrou no cassetete e desatou a bater-lhe de forma metódica. O bastão caía sobre os seus braços e pernas. Batia e batia para lhe dar uma lição. Mesmo no meio de uma dor intensa, ela não procurou defender-se nem se enrolou no chão.”
Do outro lado da barricada está Leninha, uma mulher com uma vida normal para a época: casada, com um filho, um marido com uma amante e dois filhos, uma mulher polícia, agente da PIDE, perfeitamente integrada na sociedade. Leninha é também a grande torturadora de Caxias, aquela que mais mulheres quebrava, a que nunca conseguiu vergar Laura. E é, também, uma exímia torturadora porque tira prazer do sofrimento que incute nos outros.
O período temporal retratado em ‘As longas noites de Caxias’ ultrapassa o fim da ditadura. Em 1977 vemos Leninha na barra do Tribunal Militar, a ser julgada pelos crimes de tortura e a sorrir enquanto Laura depõe.
“O seu testemunho trouxera-lhe uma espécie de vitória retrospectiva, sentindo-se agradada por as suas acções terem marcado Laura, deixando nela um rasto de angústia permanente. Vendo-se como que a través de um espelho, imaginava-se a chamar-lhe cabra como noutros tempos.”
Apesar de a sentença descrever a chefe de Brigada da PIDE como perversa e dos factos se darem como provados, Leninha acaba por ter uma pena de prisão de dois anos e meio, dois dos quais já estavam de resto cumpridos, num período de preventiva. Laura sente que tem um fantasma a assombrá-la para sempre. Em 2003, quando Leninha está a morrer de cancro dos ovários, uma amiga pergunta-lhe se tem remorsos do que fez em Caxias.
“A resposta foi inequívoca e imediata: «Não, nunca me arrependi de nada. Os tempos da PIDE foram os mais felizes da minha vida»”
Desequilíbrio. É a sensação mais permanente que este livro deixa. Uma sociedade apoucada pelo medo dá lugar a outra que, aparentemente, não tem medo de nada, nem dos agentes do Estado Novo que integra e a quem dá “uma reforma justa”. A agente sente-se injustiçada porque “defendíamos o país” e não há espaço na cabeça de Leninha para, pelo menos, rever os atos cometidos à luz da democracia que a acolhe e lhe dá sustento.
‘As longas noites de Caxias’ é um importante texto da ser lido pelos que vivem hoje em democracia, em Portugal. Este e outros documentos que venham a ser dados ao prelo são fundamentais para que não se tente branquear a verdade histórica, nem se tente regressar ao passado o que, como vemos em Espanha por estes dias, não é necessariamente difícil que venha a acontecer.
