Mulheres aprisionando outras mulheres

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Imagem de Isabel Santiago.

Tivemos nos últimos dias o já famoso e infame (a tender mais para o infame) texto de uma senhora com discurso inegavelmente fascista sobre o determinístico (para ela) papel para as mulheres portuguesas. O mecanismo para conformar à força as mulheres à sua função reprodutora e de domésticas subservientes do marido, sem ambições próprias que não passem pelo sucesso do seu amo e senhor, é o social shaming. As mulheres que resistirem a conformar-se com o papel de segundo sexo (diria Simone de Beauvoir) deverão ser enxovalhadas socialmente: são umas badalhocas que não se sabem vestir nem decorar a casa, umas vagabundas que dormem com todos (o supremo horror é a liberdade sexual das mulheres), não têm filhos (mesmo que os tenham), um grande blablabla desenfreado e carregado de ódio e ressentimento.

Semanas antes, Daniela Silva (da mesma tendência partidária de integristas católicos) escreveu outro texto interessante. Nele, desvirtuando como pode as conclusões do estudo da FFMS sobre as mulheres portuguesas, argumenta que a igualdade no mercado laboral entre homens e mulheres deve ser evitada e não se devem implementar políticas igualitárias. Porquê? Porque as desigualdades existentes são boas uma vez que, profissionalmente penalizadas, as mulheres são empurradas para casa para terem filhos. Politicamente, assim, a bem do aumento da taxa de natalidade, deve ser negada às mulheres a possibilidade de progressão profissional em condições igualitárias.

Sim, é demasiado mau para ser verdade. É ver as mulheres como nada mais que objetos mecânicos de produzir bebés. Tal como no caso do texto da médica de Coimbra, é extirpar totalmente as mulheres de dignidade – e liberdade.

A distopia de Margaret Atwood, The Handmaid’s Tale, chegou a Portugal e é defendida abertamente.

Ora – seria rísivel não fora tão perigoso – a senhora que fala desta forma autoritária de maternidade e da imposição da maternidade às mulheres – não dar boas saídas profissionais para que sejam condicionadas a ‘escolher’ a maternidade – não tem filhos, apesar de ter idade para tal. É sempe muito bom e credibilizante falarmos com ar de autoridade sobre realidades que desconhecemos.

Bom, os dois textos levam à constatação perturbante que há mulheres que querem aprisionar outras mulheres – na esfera doméstica, na ausência de estímulo intelectual, na maternidade (desejada ou não), na subalternidade face aos homens, na inexistência de representação política para as questões e problemas e vicissitudes da vida das mulheres.

Cada mulher tem direito a escolher a vida que entende, mais ou menos orientada para a família e domesticidade e maternidade, ou menos, mais empenhada numa carreira profissional, ou menos. De resto, o peso de cada componente bem pode mudar ao longo da vida. E nada garante que uma mulher que escolha trabalhar só em casa para a vida doméstica e família não seja feminista (conheço vários casos).

Mas o que leva mulheres a tentarem impor às outras mulheres as suas escolhas e a sua visão particular do mundo? O que explica mulheres a não conseguirem viver com as escolhas das outras mulheres quando são diferentes das suas? Por que diabo há mulheres que não toleram que outras brilhem ou tentem brilhar fora da esfera doméstica e maternal (acumulando ou não com vida familiar e filhos)? Como lembra a alguém tentar forçar a maternidade a outras mulheres?

Não tenho explicação. Terei de ler e estudar este fenómeno. Porém parece-me pacífico aventar algumas razões. Insatisfações várias com a própria vida que levem a que não se tolere o sucesso alheio, nem, sequer, a procura de sucesso. Personalidade pouco empática. Vida paroquial, com falta de conhecimento do mundo. Gosto por regimes autoritários. E, como Vera Maria Gouveia Barros escreveu no meu mural de facebook, ‘é o refúgio de mulheres que seriam profissionalmente medíocres ou que são inseguras a esse respeito. Arranjam na dedicação à família a explicação para não chegarem ao topo. Como aqueles irmãos mais novos de alunos muito bons, que nunca estudaram para nunca correrem o risco da comparação com o génio da família. E, claro, precisam que as outras mulheres façam o mesmo, não vão algumas provar que se pode ser uma mãe extremosa, presente e atenta e uma profissional cheia de brio e ainda uma mulher elegante e desejável.’

Há mulheres a quem, parafraseando Locke, poderíamos aplicar a frase ‘a mulher é o lobo da mulher’. Bom, compensamos com os homens que partilham a nossa causa de liberdade feminina.

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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