Joana Bento Rodrigues, nova comediante on the block

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Imagem de Isabel Santiago.

Este domingo tivemos oportunidade de apreciar a estreia estrondosa de uma nova comediante, Joana Bento Rodrigues. Que escreveu umas coisas lindas. Confesso que de início ainda pensei que o texto era de uma personagem inventada pelos russos, a fazer-se passar pela fação de maluquinhos do CDS que odeia a atual direção (daqueles que não têm expressão nenhuma no partido mas mesmo assim tentam levar com grande esforço a política para a sacristia). Algo criado pela mesma mente inventiva que congeminou a hot line anti-masturbação que foi apresentada aos americanos como parte da interferência nas eleições presidenciais de 2016. Entende-se: as pessoas frustradas (sexualmente ou com a vida) tendem a votar com a agressividade e o ressabiamento em alta e isso favorece os extremistas. O texto é tão alucinado e descabelado que levamos tempo a acreditar que a autora existe mesmo, que tem profissão, que aquelas ideias trituradas não foram produzidas por uma inteligência artificial ainda em fase de pesquisa para atacar a presidente do CDS, que votou favoravelmente a lei da paridade, e outras deputadas do CDS também favoráveis às quotas. Porém temos de enfrentar a realidade: o texto não foi escrito por um bot russo.

(By the way, acho que foi um fantástico serviço público do Observador. Não estou a ser irónica nem a espetar uma farpa no meu jornal. Acho mesmo. Geralmente os, e as, machistas têm o cuidado de não se apresentarem tão claramente. Dizem uns bolos para enganar os tolos sobre maravilhas femininas e enrolam os ataques em boas intenções. Mas este texto foi tão cristalino que é material de diamante sem inclusões para exemplificar as pessoas com este tipo de ideias. Foi um bom disclosure.)

De seguida, ponderamos ‘ah, isto é uma paródia’, a mostrar como é que se atualizaria para 2019 o franquista Guia Para Las Buenas Esposas, de 1953. Atualizaria, escrevi eu? Nada de atualizar, é só mesmo traduzir e dar um ar às frases de século XXI. Dar ar às frases de séc. XXI, acabei de teclar?! Ora, nada, nem isso, que o ar de século XXI tirava o potencial histriónico ao texto. Deixo-vos aqui umas pérolas, para verem o calibre da piadista.

A mulher gosta de se sentir útil, de ser a retaguarda e de criar a estabilidade familiar, para que o marido possa ser profissionalmente bem sucedido. Esse sucesso é também o seu sucesso! Por norma, não se incomoda em ter menos rendimentos que o marido, até pelo contrário. Gosta, sim, que seja este a obtê-los.

Hein, estão a ver? As mulheres gostam de ganhar menos que os homens. O sucesso da mulher não é o seu próprio sucesso, é o sucesso do marido. A mulher vale pelo sucesso do marido.

assume, amiúde, muitas das tarefas domésticas, com toda a sua alma, porque considera ser essa, também, a sua função.’

Viram? Faz as tarefas domésticas porque é esse o lugar da mulher, agora por-se um homem, que tem coisas tão importantes para fazer, como ver o futebol, a lavar a loiça.

Dificilmente poderão estar em pé de igualdade com o homem, que mais facilmente dedica horas extra ao trabalho, abdicando do tempo em Família, em nome da progressão laboral e, está claro, daquilo que é um apelo mais masculino.’

Entendem? À mulher a casa, naturalmente, ao homem o trabalho. Os sissies que agora mudam fraldas aos filhos, e tiram as licenças parentais, vejam bem o mal que andam a fazer.

Não espanta, assim, que haja menos mulheres em cargos políticos e em posições de poder. A mulher escolhe-o naturalmente.’

Amores, é a ordem natural das coisas as mulheres não estarem na política. É expressão do Bem, ‘bem’ com letra grande e tudo. São as mulheres que não querem estar na política. (E que pena esta senhora não seguir as suas próprias ideias.)

E as feministas? Ora, as feministas são umas vagabundas que andam por aí a dormir com toda a gente. Joaninha não é amiga da liberdade sexual das mulheres. Gosta muito de trazer de volta o social shaming para uma mulher que não é casta. Assim como as antigas coscuvilheiras das aldeias que vigiavam quem as vizinhas recebiam em casa e contavam tudo.

Além de vagabundas, as feministas não se arranjam. Apesar de se objetificarem, quererem ser objeto de desejo e adorarem capas de revistas – acho que aqui já toda a gente percebeu que a senhora doutora tem os fusíveis queimados e a lógica não impera. Também não gostam de decorar a casa, são desarrumadas, não querem casar nem ter filhos.

Internar a senhora, quiçá?

Bom, umas considerações a este texto de humor involuntário.

Uma. É humor, mas também um manifesto veemente contra a participação política de mulheres. Dois. É um texto fascista. Sim, é o fascismo que atribui níveis de dignidade diferentes aos vários grupos de pessoas, uns são mais pessoas que outros (no caso, outras). Considera que as mulheres não são seres com valor intrínseco próprio; para esta pessoa, e para quem tem o mesmo discurso, as mulheres só valem enquanto ‘bem casadas’ – e o ‘bem casadas’ também é todo um programa, mas deixemo-lo por agora, para ilustrar que as mulheres só valem enquanto instrumentos para o sucesso de um homem, o marido – e mães. As mulheres só valem tanto quanto vale o seu ‘potencial matrimonial e maternal’. Três. Pessoas que gastam o seu tempo obsessivamente a mostrar como as quotas são maléficas e perniciosas (diferente de ser contra as quotas mas não fazer disso uma obsessão), no fundo pensam como esta humorista. Só não assumem tão cristalinamente ao que vêm. O benefício das mulheres – na política e noutros lados – também é este: dizemos o que temos a dizer em vez de estarmos com rodriguinhos. Quatro. É discurso de ódio às feministas e às mulheres não conservadoras. Quinto. Joana Bento Rodrigues passará a ser sinónimo de idiota útil.

E agora alguém diga à Joaninha para beber uns copos de vinho e, em gostando, ter bom sexo. É que se continua assim fica cheia de rugas num ápice. Odiar muito – feministas ou outras pessoas – provoca rugas. Eu posso caridosamente dar umas dicas daqueles cremes muito caros para pedir ao marido (se tiver, admitindo que o texto não foi uma publicidade desesperada ‘não me importo de ser criada gratuitamente’ para arranjar homem), para lhe comprar, mas com este nível de ódio nem as algas do La Mer a salvam. Ou lhe alisam a pele. Para mais, mentir sobre outras mulheres, da última vez que vi era pecado.

 

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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