“Oh. I’ll tell you what freedom is to me. No Fear. I mean really No Fear. If I could have that half of my life. No Fear.” (Nina Simone, 1968)
Numa ida ao Estádio, há uns anos atrás, comprei um cachecol do Sporting, com a inscrição “Mulheres com Garra”. Ter garra. Ter força de vontade, de ânimo, de determinação, de entusiamo, de persistência, de resiliência. E assim sucessivamente.
Condições para ser tudo isto: amor-próprio, autoestima, acreditar que somos merecedores de uma vitória.
Muito se tem escrito e falado em Portugal, nas últimas semanas, sobre questões de violência e coação sexual, em assédio e abuso sexual. Vitimas e agressores numa luta para erguer a taça da verdade e a troca de galhardetes dos respetivos adeptos que lhes vestem a camisola. Mas os atos de violência e abuso sexual não são jogos de sedução, estes últimos recíprocos, mutuamente desejados, bilaterais, como refere Maria João Faustino, no seu artigo Os Homens não são bestas. E não são: “(…) nem bestas sexualmente insaciáveis de impulso incontrolável, nem bestas emocionais incapazes de empatia. Os homens sabem ler contextos, sinais e circunstâncias; não são aliens, monstros inimputáveis ou analfabetos emocionais.” E mais acrescenta: “a violência masculina não é inevitável. Não há nenhuma programação natural, desígnio biológico ou fatalismo na violência sexual. A violência sexual é produto da cultura, não da biologia; é social, não natural”.
Se é um produto da cultura, tem um carácter adaptativo, dinâmico, em permanente desenvolvimento humano e social. E que época mais propícia esta em que vivemos (onde fomos obrigados a parar e questionar, em que perdemos o controlo do tempo e do espaço) para se introduzirem novos hábitos, cortarmos a direito com a permissividade, abalarmos estereótipos. Ou acabar com eles mesmo.
Sempre é tudo uma questão de timing, afinal?
Qualquer tipo de violência infligida deixa marcas profundas num pilar fundamental: a nossa autoestima. E uma autoestima destruída é profundamente castradora e limitadora. Torna-nos vulneráveis e retira-nos capacidade de reação. As marcas de um ato de violência afetam a estabilidade emocional, que afeta o comportamento, que afeta a ação. E as marcas podem estar invisíveis aos olhos. Aos dos outros e aos nossos. E o medo. O medo enraizado nas células.
O questionar dos timings de quem tem falado abertamente sobre abusos sofridos há anos é não ter a mínima da noção do que é sofrer de abusos. Os acontecimentos traumáticos podem ficar trancados numa gaveta no armário das memórias. Só passados anos, uma vítima de abuso consegue despir o manto da culpa ou transferir a responsabilidade do ato para o agressor ou, em alguns casos, só se aperceber, muito mais tarde, o quanto os abusos na infância, por exemplo, influenciaram a sua vida adulta e atitudes no presente. Numa sessão de psicoterapia, num dia de sol ou de chuva, no toque de um nervo que estava adormecido e que disparou, em sinal de alarme. Correlacionar acontecimentos traumáticos com círculos viciosos comportamentais pode ser libertador. É libertador.
Frédéric Lenoir, escritor, filósofo e sociólogo francês, acredita que voltar à vida que tínhamos antes da pandemia é perder uma oportunidade. A capacidade de resiliência é um conceito chave em todo o processo de recuperação de situações traumáticas e que Lenoir define como “a propriedade de um corpo recuperar a sua forma original após sofrer um choque ou deformação”. Capacidade de superar adversidades. Fundamental, como afirma o autor, para superar, também, este trauma pessoal, mas sobretudo coletivo, que nos abalou as estruturas, desde março 2020. E que vai perdurar. Como perduram, no tempo, os traumas de assédios, de abusos e de violência.
Que as adversidades não nos definam. Que o medo não nos paralise. Que se fale no timing que bem se entender, com a tal responsabilidade pela palavra dita. Que uma pata (sem u) de unhas afiadas não esmague o grito de liberdade. A garra deve ser outra.
Imagem: Escultura do artista polaco Igor Mitoraj. Fotografia tirada em maio de 2021, Scheveningen, Haia.