“É preciso não confundir assédio com sedução”, ouve-se, sempre que uma mulher partilha a sua história. O repto não é de agora: já o ouvimos, tantas vezes, a propósito do debate público em torno do assédio de rua, cronicamente relativizado como “piropo” ou galanteio. Já o ouvimos também noutros lugares, onde o #metoo e movimentos similares despontaram mais cedo: lembremo-nos do contexto francês, onde figuras como Catherine Deneuve defenderam um alegado “direito a importunar”. (Agora como então, que haja mulheres a repeti-lo não deve espantar-nos: as mulheres são também agentes do patriarcado, socializadas na mesma cultura, ainda que com papéis tão diferentes.)
O apelo a que se distinga assédio de sedução surge, com frequência, maquilhado de boas intenções. “É preciso não confundir assédio com sedução”, dizem-nos, para que os “verdadeiros casos” de assédio não sejam descredibilizados por arrasto. O mesmo apelo vem imbuído de condescendência para com o comportamento masculino, ancorada no subtexto de que os homens são tantas vezes destrambelhados, talvez um pouco excessivos, nas suas tentativas de sedução. Podem ser umas bestas românticas, subentende-se.
Sem surpresa, as fronteiras parecem nebulosas sobretudo (apenas?) quando imaginamos o contexto htero, onde se espera que homens seduzam mulheres. Afinal, o guião do amor romântico explorado à exaustão na cultura popular, dos contos da Disney às comédias-românticas de Hollywood, assenta na insistência masculina perante as resistências ou hesitações das mulheres – pelo que não espanta que, para muitos, a exigência de igualdade signifique a morte do romance. Só num contexto que erotiza, romantiza e normaliza a violência contra as mulheres se compreende que tantas vozes repitam “é preciso não confundir sedução com assédio” de cada vez que uma mulher partilha a sua história. Se os homens fossem sexualmente assediados e/ou agredidos por outros homens, numa base diária – na rua, no trabalho, nas relações de intimidade – esta questão não se colocaria. Fossem os homens alvo de assédio e tantos dilemas e confusões se dissipariam de imediato. Todas as fronteiras seriam muito mais claras, e a sedução seria inequivocamente o que é: recíproca, mutuamente desejada, bilateral.
Eu, feminista, sei que os homens não são bestas: nem bestas sexualmente insaciáveis de impulso incontrolável, nem bestas emocionais incapazes de empatia. Os homens sabem ler contextos, sinais e circunstâncias; não são aliens, monstros inimputáveis ou analfabetos emocionais. Sabem ler o desinteresse, o desconforto, a dor e a recusa das mulheres. A ideia de que os homens não percebem a recusa e o desinteresse das mulheres é um mito – já desmentido, de resto, quer pela literatura científica sobre violência sexual, quer pela experiência que todas temos com homens íntegros e aliados. O problema da masculinidade não reside numa qualquer incapacidade de empatia, mas na socialização para a impunidade e na tolerância para com a violência.
Sou feminista também – ou precisamente – por isto: porque acredito que os homens não são bestas. Recuso acreditar que os homens sejam naturalmente agressivos, ou agressores. Sou feminista porque acredito que a violência masculina não é inevitável. Não há nenhuma programação natural, desígnio biológico ou fatalismo na violência sexual. A violência sexual é produto da cultura, não da biologia; é social, não natural. Deixemos, pois, de tratar os homens como bestas. É possível pôr fim a séculos de silêncio, de violência e impunidade: este é o momento.