O Holocausto não acabou a 27 de janeiro de 1945

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Há dias estava a rever um ensaio que escrevi para a revista Ler sobre livros feministas e passei pela parte dedicada a Bad Feminist de Roxane Gay. Este livro é muito curioso (leiam-no; e leiam o ensaio), e um dos temas que aborda é linguagem sobre violência sexual nos media e a forma como se retratam estas situações traumáticas em filmes e séries televisivas. No fundo, representavam tudo como um mau momento, claro, e sofrimento a seguir, mas mais ou menos resolvido a tempo do final agradável para não tirar o sono aos espetadores. Assim como se se partisse uma perna. É desagradável, mas cura-se e não deixa sequelas.

Logo no dia seguinte – 27 de janeiro – foi o Dia Internacional de Memória das Vítimas do Holocausto, relembrando o dia em que o exército soviético ‘libertou’ (muitas aspas, já lá chego) os prisioneiros, maioritariamente judeus, que estavam no campo de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau.

E o que li falava da tal libertação: os sobreviventes haviam sido libertos do Holocausto e dos seus campos de escravidão e morte. Pronto, morreu muita gente, claro, nunca se pode esquecer nem perdoar, mas já está, agora é fazer os julgamentos de Nuremberg e fechar este capítulo, os judeus instalam-se nos Estados Unidos, na América Latina e em Israel e fica resolvido.

Temos todos uma certa necessidade de pensar assim, de nos proteger da dimensão do sofrimento dos outros. A nossa solidariedade e empatia – para defendermos a sanidade emocional e psicológica própria – têm limites. São oferecidas quando damos conta que outros delas necessitam, sim, mas de seguida seguimos a vida, precisamos de nos concentrar no que há de positivo, continuar a procurar a felicidade e a alegria. E esperamos que os objetos da solidariedade e empatia também sigam, claro, que mais poderiam fazer?

Dori Laub em Testimony, Crises of Witnessing in Literature, Psychoanalysis and Literature

Sucede que no caso dos traumas não é isso que se passa. O evento não acontece e depois fica lá para trás no passado. Freud explicava que os traumas são estímulos de tal magnitude que não se processam no imediato, no momento em que ocorrem. E por não serem inteiramente vividos, regressam sob a forma de pesadelos, flashbacks, ansiedades, insónias e depressões. Segundo Freud, há até uma espécie de período de incubação dos sintomas do trauma. Fazem-se sentir meses depois do evento ou, até, anos e décadas.

Ora o trauma paradigmático, o maior, mais maligno e destruidor foi o trauma dos que viveram o Holocausto. E os que lhe sobreviveram não escaparam, naquele dia de 27 de janeiro de 1945, ao trauma que viveram. Na verdade, viveram com o Holocausto para sempre. Não houve ‘libertação’ do Holocausto para os sobreviventes.

Dori Laub em Testimony, Crises of Witnessing in Literature, Psychoanalysis and Literature

Já escrevi da importância dos testemunhos dos sobreviventes do Holocausto. Não só para lembrarmos e aprendermos com a História, mas também porque contar o trauma que viveram se torna a missão de vida para os sobreviventes. E, logo aqui, o Holocausto se perpetua – porque para honrarem o sofrimento que viveram, e o daqueles que pereceram, precisam de fazer saber ao mundo o que se passou, é necessidade comum de todas as vítimas de trauma ‘contar’, mais cedo ou mais tarde (muitas vezes mais tarde). Porém contar, que é imprescindível até para integrar e curar o trauma (quando tal pode acontecer), traz o malefício de reviver o trauma. Por outro lado, se não existir capacidade de ouvir do outro lado, as vítimas do Holocausto sentem que falharam na sua missão de contar. O que, novamente, é fonte de trauma: é uma espécie de novo abandono da sociedade – que, primeiro, permitiu que o trauma/Holocausto sucedesse e, depois, não quis saber.

Primo Levi suicidou-se, tal como muitos sobreviventes do Holocausto. Conseguiram sobreviver aos nazis, mas não à permanência do Holocausto nas suas vidas depois da dita ‘libertação’.

Dori Laub em Testimony, Crises of Witnessing in Literature, Psychoanalysis and Literature

Dori Laub – ele próprio sobrevivente do Holocausto em criança, psiquiatra americano e fundador do Arquivo Fortunoff de testemunhos do Holocausto – escreve no livro Testimony, Crises of Witnessing in Literature, Psychoanalysis, And History (em co-autoria com Shoshana Felman) como o Holocausto não teve fim para os que o viveram e lhe sobreviveram. (Nas imagens deste texto estão algumas frases e parágrafos do livro). Laub refere que os sobrevivente vivem no ‘pavor do regresso’ do Holocausto, temendo desta vez não lhe sobreviverem. Por outro lado, encaram os reveses da vida que lhes calham depois de ‘libertos’ do campo de concentração como ‘segundos Holocaustos’ ou, na verdade, como a continuação da provação do Holocausto. A morte de ente querido? Reveses financeiros? É ainda a longa mão do Holocausto.

Dori Laub em Testimony, Crises of Witnessing in Literature, Psychoanalysis and Literature

O Holocausto foi, como imaginamos, horrível. No entanto, para quem o viveu, terá sido ainda mais terrível e maligno do que nos permitimos e conseguimos imaginar. De tal forma que alterou a genética dos sobreviventes e estas alterações epigenéticas são passadas para os descendentes. Assim, os filhos dos descendentes do Holocausto têm uma maior propensão para depressão (quer por questões genéticas quer por crescerem socializados com um ou dois pais que sofrem de stress pós-traumático). O Holocausto não só se prolonga pela vida dos sobreviventes como pela vida dos seus filhos.

Esta lição deve servir-nos para olharmos para o Holocausto como um crime de ainda maior dimensão. Mas também para olharmos para os outros traumas – não sendo O maior crime da humanidade, têm reais consequências duradouras nos que lhe sobrevivem – que a vida atual presenteia com abundância. Desde a violência sobre mulheres até às mais variadas formas de exclusão de minorias. Voltarei a estas questões do trauma do Holocausto para as aplicar aos traumas da violência sobre mulheres.

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