Chicago: um musical de morrer

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Ainda tem presentes de Natal para comprar e pouco tempo para dispensar em correrias em lojas a abarrotar de pessoas, pessoal de loja em stress para acorrer a todas as solicitações, transportes públicos e parques de estacionamento cheios – enfim, sem paciência e tempo para o inferno das compras de última hora de Natal? Deixo uma sugestão: use a ligação à internet e ofereça bilhetes para o musical Chicago, por estes dias no Teatro da Trindade. Em cena desde setembro, com fim previsto para dezembro, tem tido tanto sucesso que vai ficar afinal até 29 de março de 2020. É um ótimo presente: além de ofertar o musical (já lá chego), faz uma escolha que apoia artistas e produções culturais e, além disso, é ambientalmente sustentável. Por mim, sou partidária cada vez mais de presentear experiências (que mimem ou entretenham os destinatários) em vez de objetos.

Mas não temam, que também é uma boa escolha só à conta do musical. O Teatro da Trindade tem encenado várias peças imperdíveis, desde Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, até ao Deus da Carnificina, passando pelo já aqui referido Zoom ou pelo Conto de Natal, criação de Ricardo Neves-Neves e Maria João Luís a partir de Dickens. Diogo Infante, o atual diretor do teatro, tem feito um trabalho muito recomendável em prol da vida cultural de Lisboa. Chicago – mais uma encenação de Diogo Infante – é nova aposta que se tornou sucesso.

Não é uma grande produção (estamos em Lisboa), o que se percebe sobretudo nos cenários – que, ainda assim, estão criativos, bonitos, com gosto repenicado no seu intento minimalista. Os efeitos de luzes (e o resto do espetáculo) garantem que não sintamos a falta de cenários mais barrocos. A tradução para português do argumento e das músicas está bem feita. Ah, a música (que se trata de um musical) – é dos pontos mais fortes do espetáculo. Bons músicos, bem cantadas, muito travo de jazz. Os figurinos de José António Tenente são lindos, brilhantes (literalmente), cheios de sabor dos loucos anos 20 do século passado. Os atores no ponto, boas vozes, boas pernas (que se vêem pernas em abundância). Gabriela Barros, Soraia Chaves (muitas palmas) e Miguel Raposo pontificam nas personagens principais.

E, depois, a história. Carregada de maus intentos – manipulação, ímpetos assassinos (que se concretizam), mentiras, dinheiro antes dos princípios e da consciência -, as únicas personagens com bom fundo ou têm um (muito) mau fim (uma delas) ou são o trouxa ridículo a quem ninguém dá importância (a outra), e no fim tudo isto resulta em humor, entretenimento com risos, diversão. Tem pontos em comum com a atualidade: a procura e a construção da celebridade a partir de nada, apenas para chocar e assim vender jornais, o vício do mediatismo e dos holofotes. Histórias de duas mulheres (e personagens fortes a cargo de duas atrizes para estas mulheres – ainda que moralmente questionáveis ambas as personagens, claro, calha ser sempre assim). E aquele princípio inexorável que às tantas o advogado/Miguel Raposo explica a Roxie Hart/Gabriela Barros: as mulheres são perdoadas se estiverem arrependidas e já tiverem pago os seus pecados. Muito na linha do que escreveu Anita Loos em But Gentlemen Marry Brunettes (outra vez nos mesmos anos 20 do século XX) sobre o grupo de salvação de almas de que o marido de Lorelei Lee fazia parte (mas esta parte fica para outro dia). No fundo, então como agora, permanece a necessidade de as mulheres não terem direito a uma série de realidades (que vão além de assassínios ou de comportamentos sexuais) que são gratuitas para os homens.

Um musical baseado numa história que na próxima década faz cem anos, e que mostra como tanto continua por mudar. A ver e a oferecer.

 

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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