Ao entrar no maravilhoso teatro da Trindade, a primeira surpresa. A cortina, agora subida, antecipa o cenário de toda a trama. Deparamo-nos com um apartamento pequeno, sofisticado e simples, tipicamente cosmopolita e, como constatamos mais à frente, nova-iorquino.
Entram Sandra Faleiro e João Reis como Sarah e James. O suspense adensa-se. Ele sempre preocupado com ela; ela, dorida, ainda a recuperar, de muleta, braço ao peito e cicatrizes no rosto. Entre eles, as cicatrizes de quem tenta sobreviver ao trauma.
Sente-se o peso da relação. Sente-se o elefante na sala. Que o que não é dito está implícito, atrapalhando ou sendo ausência indispensável para a continuação do amor. Ao mesmo tempo, sente-se a união, a dedicação dele, a gratidão dela. O passado que une. O futuro incerto, enfadonho para ela, seguro para ele.
Aprendemos que James e Sarah passaram por uma guerra. Que se apaixonaram na guerra. Que são produto da coragem que a precede e da ansiedade que lhe sucede. Ela, fotojornalista de sucesso, capta o sofrimento em fotografias que congelam o sofrimento. Para que ninguém esqueça que do que aconteceu. Para que ninguém deixe aquelas caras, aquelas pessoas para trás.
James é escritor. Torturado pelo trauma, na nébula de quem não consegue esquecer nem descrever o que se passou. E protege. E cuida. Dá o seu melhor para lidar com uma Sarah ferida mas ainda combativa, que se recusa a aceitar a nova rotina que para ela não é mais que interlúdio de uma vida de adrenalina e serviço.
Quando o clima se adensa, entra a lufada de ar fresco, o casal Mandy e Richard, personagens interpretadas por Sara Matos e Virgílio Castelo. Arrebatam a cena com a leveza de quem compartilha uma paixão leve, quiçá passageira, quiçá duradoura. Entra a amizade de Richard e a infantilidade hilariante de Mandy. Entram balões, abraços, piadas que conseguem levar Sarah aos primeiros risos, intercalados com as costumeiras recusas de ajuda e teimosias de quem nega a mais pequena sugestão de invalidez.
A dupla Richard/Mandy é o dínamo que provoca a mudança. Que tira do sério, que se alegra, que motiva e que questiona. An old friend is like a mirror. Richard, editor de uma conhecida revista, é o lembrete do sucesso de Sarah, do que pode estar por vir assim ela queira, do entusiasmo profissional que sempre a galvanizou. Mandy, o alter-ego, a voz que questiona a dureza da vida profissional de Sarah, sem pejo nem pudor de exprimir, em cada afirmação, gesto ou frase, o seu jeito aparentemente ingénuo, pueril. “És Deus?”, pergunta, em jeito de resposta a uma Sarah que conta como fotografou todo aquele sofrimento na impassividade/frieza de quem está a cumprir uma missão. James, confuso, dividido entre o dever e o desejo de levar uma vida livre de trauma, assiste a tudo, tenta escrever, escapar, esquecer o que viu, cuidar de Sarah e livrá-la do desejo de mais abismo, mais guerra, mais adrenalina, já suspeitando que não se enjaula a determinação, que não se muda quem se ama.
O texto é uma obra de arte. Donald Marguiles, o autor, compõe frases com a carga emotiva de temas actuais: dos traumas de guerra e das guerras interiores. Do amor em tempos de liberdade. Da intelectualização do sofrimento. De como conviver com a culpa, como superar o erro, como negar o que se precisa em nome do outro. De como reafirmar o modo de ser perante o outro. Do que pode ser cedido e do que tem de ser mantido. Zoom é a história de um amor construído literalmente a ferro e fogo. Dois protagonistas maravilhosos, que se revelam, que se adoram, que lutam por paz e por regressos às diferentes normalidades. Ela, querendo tudo como antigamente. Ele, querendo tudo como nunca foi: esquecido, acomodado, mais leve. Os dois no microclima nova-iorquino, que os junta e afasta, com amigos que questionam através da diferença.
Um grande texto. Uma grande peça, brilhantemente interpretada. Um director genial, quatro actores fabulosos. Uma alegria ter teatro assim em Lisboa.
Imperdível. Porque não basta dizer que se apoia o teatro, é preciso ir!
Até 31 de Março, no Teatro da Trindade.